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The New York Times

Em debate, Biden e Sanders pregaram a fiéis em vez de buscar ampliar bases

Talvez por medo de decepcionar eleitores, pré-candidatos defenderam fortemente suas diferenças

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Ben Mathis-Lilley
The New York Times

Tirando a hipótese de Joe Biden desistir de sua candidatura, é praticamente certo que ele será o candidato democrata à Presidência, e não Bernie Sanders.

A vantagem em número de delegados, a dianteira nas pesquisas nos Estados que ainda não votaram e a possibilidade de muitas dessas votações serem canceladas em função do coronavírus levam a crer que ele será o nome escolhido.

Biden com certeza tem consciência disso, e Bernie Sanders já reconheceu o fato também, como ficou claro quando ele claramente não afirmou que ainda existe um “caminho à vitória” para ele.

Com uma crise de saúde pública aguçando as atenções, os dois candidatos deveriam ter enxergado o debate de domingo na CNN como uma espécie de trabalho de promoção feito por vendedores.

Os pré-candidatos democratas Joe Biden, à esq., e Bernie Sanders durante debate realizado em Washington
Os pré-candidatos democratas Joe Biden, à esq., e Bernie Sanders durante debate realizado em Washington - Kevin Lamarque - 15.mar.20/Reuters

Biden explicando aos partidários de Sanders por que se solidariza com o ponto de vista deles, e Sanders explicando aos partidários de Biden por que assumir posturas mais fortes sobre determinadas questões pode beneficiar a tão importante elegibilidade do candidato democrata.

Desde o último debate, os contornos da corrida democrata e os do dia a dia nos EUA sofreram alterações radicais. O encontro do domingo teria sido uma chance para os dois políticos veteranos mostrarem como conseguem reagir a mudanças nas circunstâncias com uma mensagem nova, coerente e construtiva.

Não foi o que aconteceu. Quer seja por hábito, por deferência ao formato que opõe um candidato a outro ou, ainda, pelo medo de decepcionar suas bases, Biden e Sanders, em vez disso, defenderam fortemente as diferenças entre suas carreiras e visões de mundo.

Não que o tom do debate tenha sido acalorado: embora cada candidato, em vários momentos, tenha parecido irritado com a maneira como o rival descreveu o histórico um do outro, não houve momentos caóticos de gritaria nem ataques pessoais ousados do tipo que teria arrancado expressões de susto da plateia —se houvesse uma plateia, uma vez que a CNN transferiu o debate de Phoenix a Washington e o realizou num estúdio por motivos de distanciamento social.

Mas em uma questão após outra —Previdência, mudança climática, autoritarismo em outros países, participação jovem nas eleições, até mesmo o coronavírus— não houve um esforço por parte de nenhum dos candidatos de desviar a discussão das diferenças já claramente delineadas entre eles e aproximá-la do tipo de mensagem pan-democrata que seria aconselhável a ambos transmitir.

Sanders, por exemplo, perdeu uma oportunidade quando questionado sobre um tema muito abordado: se os americanos acham mudanças incrementais mais palatáveis do que uma “revolução política”.

O senador do Vermont poderia ter dito que sim, muitas pessoas me consideram um risco grande demais, mas se elas quiserem se aliar a meus seguidores e vencer em novembro, deveriam tentar entender por que tantas pessoas fazem parte de meu movimento.

Ele poderia ter dito ainda que muitas pessoas o apoiam porque não têm sido tão beneficiadas pelo status quo quanto os eleitores mais velhos e/ou mais ricos.

Poderia ter vinculado a resposta diretamente ao modo como o surto de coronavírus vem revelando as ligações entre falhas aparentemente não relacionadas do sistema social americano em questões como licença médica, dívida estudantil e acesso à internet –e com a possibilidade relacionada de que modificações nesse sistema podem na realidade provocar menos perturbações no cotidiano de indivíduos em situação mais confortável.

Uma resposta desse tipo, pautada por seus princípios mas expressa em tom conciliador, teria beneficiado Sanders, mostrando que ele “joga para o time” democrata e demonstrando a utilidade que ele pode ter para uma potencial administração Biden, como figura a representar e angariar o apoio de eleitores com quem o ex-vice-presidente não tem uma conexão tão direta.

Em vez disso, porém, Sanders repetiu alguns de seus argumentos de praxe sobre a economia ser manipulada –pontos que, por mais factuais que possam ser, equivalem essencialmente a insistir que os eleitores de Biden deveriam realmente se unir à revolução de Sanders.

E então ele partiu para um discurso sobre financiamento de campanhas, num ataque implícito ao trabalho de levantamento de fundos feito pelo rival democrata.

“Façamos algo que raramente é feito no Congresso. Vamos fazer algo que a mídia não faz. Vamos falar da realidade da vida americana. Por que nos últimos 45 anos, apesar do crescimento tremendo da produtividade e da tecnologia, o trabalhador mediano não está ganhando um centavo a mais? Por que nos últimos 30 anos o 1% mais rico da população viu sua riqueza crescer em US$ 21 trilhões, enquanto a metade de baixo da América viu sua riqueza encolher em US$ 900 milhões? Por que somos o único grande país do mundo a não garantir saúde universal para todos como um direito humano? Por que somos o único grande país a não ter licença médica e licença familiar pagas? Damos incentivos fiscais a bilionários enquanto meio milhão de pessoas está sem teto. Isso tudo se deve a uma coisa da qual não falamos. A estrutura de poder na América. Quem detém o poder?

Vou contar a vocês quem tem o poder. São as pessoas que doam dinheiro. Os bilionários que doam dinheiro para campanhas políticas. Que controlam a agenda legislativa. Essas pessoas têm poder. Se você quer efetuar transformações reais neste país, se quer criar uma economia que funcione para todos, não apenas para alguns poucos, se quer garantir atendimento de saúde de alta qualidade para todos, sabe o que é preciso? É preciso enfrentar Wall Street. É preciso enfrentar as empresas farmacêuticas. E as seguradoras e a indústria dos combustíveis fósseis. Você não deve aceitar contribuições de campanha deles. Deve enfrentá-los e criar uma economia que funcione para todos.”

E lá estava Biden, mais adiante no debate, perdendo uma oportunidade igual de falar diretamente com eleitores mais jovens e insatisfeitos, quando os moderadores da CNN lhe questionaram por que Sanders ainda está à frente dele em determinados setores do eleitorado.

“Vamos deixar uma coisa clara. A energia e o dinamismo que vêm ocorrendo até agora têm sido a meu favor. Aumento de 70% no comparecimento de eleitores às urnas na Virgínia, e posso continuar com a lista. Esse pessoal está indo às urnas para votar em mim. Eu nem tinha dinheiro para competir com este homem nesses Estados. Eu não tinha virtualmente nenhum dinheiro. A imprensa não parava de dizer ‘Biden não tem dinheiro’. Ela tem razão –Biden não tinha dinheiro. A ideia era: por que os eleitores estão fazendo isso? Estão fazendo isso porque sabem que eu sei o que precisa acontecer. Eu sei o que precisa ser feito. E, de quebra, a ideia de que todo o mundo seja a favor do Medicare para Todos –ele ainda não indicou quanto isso vai custar às pessoas. Então é isso o que quero dizer: as pessoas não conhecem os detalhes, de jeito nenhum. E o fato é que eu estou ganhando por grande maioria entre todas as partes do eleitorado democrata.”

Praticamente qualquer resposta concebível teria sido mais útil que essa para as chances de Biden de seguir adiante e conquistar a adesão dos jovens –mais útil do que ele declarar defensivamente que está ganhando uma disputa que todo o mundo sabe que ele está ganhando.

Mas algo como a frase a seguir talvez tivesse especialmente bem recebida: “Acho que Bernie está reagindo a um anseio que é profundo e real, e ele tem credibilidade por conta disso. Esse anseio é –a concentração absoluta da riqueza em um grupo pequeno, com a classe média sendo deixada de fora. Antigamente havia um acordo tácito básico: se você contribuísse para a lucratividade de um empreendimento, recebia uma participação nos lucros. Esse acordo foi rompido. A produtividade está em alta, mas os salários estão estagnados. Ninguém questiona a autenticidade de Bernie em relação a esses pontos.”

Essa explicação cordial da atração exercida por Sanders foi apresentada pelo próprio Biden em 2016, quando estava explicando à CNN por que outra candidata vista como a primeira colocada nas pesquisas estava tendo dificuldade em consolidar o voto dos jovens.

Teria sido bom para o Partido Democrata (e para impedir um colapso civilizacional) se Biden tivesse começado a apresentar esse argumento de novo e se Sanders o tivesse ajudado nisso.

Em vez disso, como tantos outros estão fazendo neste momento, eles simplesmente puseram uma reprise no ar.

Tradução de Clara Allain

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