Descrição de chapéu Coreia do Norte

Disputa na Coreia do Norte poria em risco arsenal nuclear, diz biógrafa de Kim Jong-un

Para Anna Fifield, não há sucessor óbvio para ditador, que não é visto há semanas

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São Paulo

Para a neozelandesa Anna Fifield, uma das jornalistas que mais entendem de Coreia do Norte na atualidade, não há um sucessor óbvio para o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, e o maior risco de uma disputa de poder seria a segurança do arsenal nuclear do país.

Nos últimos dias, passaram a circular rumores sobre a saúde do dirigente norte-coreano. Sites relataram que Kim havia passado por uma cirurgia cardíaca, e outros, que ele tinha morrido.

O fato é que Kim não é visto em público há semanas, e a imprensa estatal não se pronunciou sobre o assunto.

O ditador norte-coreano, Kim Jong Un, cena durante evento em Pyongyang
O ditador norte-coreano, Kim Jong Un, cena durante evento em Pyongyang - 28.ago.16/KCNA via AFP

“Se Kim Jong-un morre e há uma disputa de poder na Coreia do Norte, talvez um cientista nuclear possa fugir do país com material atômico”, diz Anna, autora da biografia “The Great Successor: The Divinely Perfect Destiny of Brilliant Comrade Kim Jong Un” (o grande sucessor: o destino divinamente perfeito do brilhante camarada Kim Jong-un) e chefe da sucursal do jornal The Washington Post em Pequim.

“Normalmente, poderíamos contar com EUA e China fazendo planos para a mudança na liderança do país, mas, dado o estado da relação entre as superpotências, não sei se estão cooperando em algum tema.”

Já houve rumores sobre a saúde de Kim Jong-un antes. Desta vez é diferente? É provável que ele esteja morto ou gravemente doente? Acho que é plausível que ele tenha passado por uma cirurgia cardíaca, ele claramente tem problemas de saúde. Kim é muito obeso, frequentemente é visto fumando e anda como um homem muito mais velho do que os 36 anos que ele tem. Isso tudo certamente deu força aos rumores, mas nós simplesmente não sabemos se é verdade. Kim Jong-un já desapareceu antes, por problemas de saúde, e voltou a governar normalmente. Em 2014, ele sumiu por seis semanas e depois reapareceu usando uma bengala. Desde então, ele só ficou mais confiante e poderoso. Por enquanto, precisamos esperar que a mídia estatal da Coreia do Norte anuncie alguma coisa, ou que Kim reapareça.

A sra. já esteve 14 vezes na Coreia do Norte e vem cobrindo os assuntos do país desde 2004. Na sua visão, quem seria o mais provável sucessor de Kim? O grande problema agora é que não há um sucessor óbvio. A família Kim sempre reivindicou o direito de liderar o país, dizendo que eles supostamente têm nas veias o mítico “sangue Paektu” e, por isso, só alguém da família poderia governar. Mas o único integrante da família que tem algum tipo de função no regime e vida pública é a irmã mais nova de Kim Jong-un, Kim Yo-jong.

E aí temos um grande obstáculo: não apenas ela é muito jovem, tem apenas 31 anos, como também é mulher. A Coreia do Norte segue os princípios de Confúcio que valorizam idade e masculinidade, então é difícil vê-la assumindo a liderança. Mas, de novo, não há nenhuma outra pessoa.

A sra. acredita que o regime aceitaria a irmã de Kim como sucessora? O que sabemos sobre ela? A irmã dele tem ganhado cada vez mais destaque no regime nos últimos dois anos, mas sempre em um papel coadjuvante. Ela carrega livros e canetas para o irmão, encarrega-se de garantir que tudo esteja correndo bem e que a imagem de Kim seja a melhor possível. É parecido com o papel que a tia deles desempenhava para o pai deles, Kim Jong-il. Kim Yo-jong parece ser muito competente e esperta. Ela conquistou os sul-coreanos quando foi ao país para as Olimpíadas de Inverno em 2018. Mas ela não é cercada por toda a propaganda política que os integrantes masculinos da família são. A mídia estatal norte-coreana nunca sequer relatou que ela é irmã de Kim.

Como uma mudança na liderança poderia afetar o programa nuclear do país? Não devemos esperar mudanças. Se Kim Jong-un morrer e alguém assumir, eles vão achar que precisam ainda mais das armas nucleares para garantir sua segurança. As armas estão lá para dissuadir ataques do mundo exterior, e alguém que tomar o poder agora vai provavelmente ser ainda mais paranoico do que Kim Jong-un. A grande questão é a segurança do arsenal nuclear. Se Kim Jong-un morre e há uma disputa de poder na Coreia do Norte, há preocupações sobre proliferação: talvez um cientista nuclear possa fugir do país com material atômico. Normalmente, poderíamos contar com os EUA e a China fazendo planos para a mudança na liderança do país, mas dado o estado da relação entre essas duas superpotências, não sei se estão cooperando em algum tema.

Podemos esperar algum grau de abertura no país se houver troca de liderança? Impossível dizer, porque dependeria de quem assumisse. Se fossem militares, definitivamente não haveria abertura. Se fosse alguém com uma mentalidade mais reformista, daí talvez, mas pouco. Fundamentalmente, a Coreia do Norte sobreviveu todo esse tempo isolada, fechada para o resto do mundo e mantendo a população com medo. Isso não irá mudar enquanto esse regime estiver no poder.

Para escrever o seu livro, a sra. conversou com os tios que ajudaram a criar Kim na Suíça e com inúmeras pessoas que tiveram contato com o ditador. Quão próximo você já chegou de Kim Jong-un? E qual foi sua impressão? Eu passei muito tempo pensando sobre Kim Jong-un e, quando estava escrevendo sobre a infância dele, cheguei a sentir pena. Ele teve uma infância tão disfuncional que não daria para ele ter virado um adulto diferente do que ele é hoje. Mas à medida em que eu fui escrevendo, eu fui ficando com mais raiva. Kim Jong-un manteve os piores aspectos do regime, perpetuando a brutalidade e a repressão, e faz muito pouco para melhorar a vida das pessoas. Sua única preocupação é manter sua família no poder, ele não está nem aí para seus 25 milhões de compatriotas.

Quais são as principais percepções errôneas que as pessoas têm sobre a dinastia Kim e a Coreia do Norte? Há sempre uma tendência de tratar Kim Jong-un como um ditador de desenho animado, com cabelo esquisito e armas nucleares, e encará-lo como um maluco. Afinal, Donald Trump já o chamou de “doido completo”. Mas isso não é verdade. Ao longo dos anos, Kim Jong-un tem se mostrado perspicaz e calculista, mesmo que isso tenha envolvido brutalidade. Ele sistematicamente se livrou de seus rivais, cultivou a lealdade de seus funcionários mais importantes ao deixá-los enriquecer e até conseguiu fazer o homem mais importante do mundo encontrar com ele na Ásia três vezes. Todos esses são atos bastante racionais de um ditador totalitário que quer continuar no poder. Tratar Kim como uma piada é subestimá-lo. Ele provou ser uma ameaça potencial para o mundo e real para sua população da Coreia do Norte.​


ANNA FIFIELD, 44

Jornalista neozelandesa, é chefe da sucursal de Pequim do Washington Post. Entre 2014 e 2018, foi chefe da sucursal do jornal em Tóquio, escrevendo sobre o Japão, as Coreias e outros lugares da região, com foco na dinastia Kim e a vida na Coreia do Norte. Antes do Post, trabalhou por 13 anos para o Financial Times fazendo coberturas em mais de 20 países. Em 2018, ganhou o Prêmio Shorestein de Jornalismo pela cobertura da ásia, organizado pela Universidade Stanford, nos EUA.

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