Quem compara fatos atuais ao nazismo ignora ou distorce história, diz associação judaica dos EUA

Para American Jewish Committee, menções de governo Bolsonaro ao Holocausto podem prejudicar relação com Israel

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São Paulo

Principal entidade representativa dos judeus nos EUA e uma das mais influentes do mundo, o American Jewish Committee (Comitê Judeu Americano) parece ter enfim perdido a paciência com as constantes referências do governo de Jair Bolsonaro ao nazismo.

A gota d’água foi o tuíte do ministro da Educação, Abraham Weintraub, comparando a ação da Polícia Federal contra fake news, na quarta-feira (27), à Noite dos Cristais, um ataque a lojas e estabelecimentos ligados à comunidade judaica na Alemanha, em 1938.

O evento é considerado um marco na escalada nazista que levaria ao Holocausto.

“Hoje foi o dia da infâmia, vergonha nacional, e será lembrado como a Noite dos Cristais brasileira”, escreveu Weintraub no post, com uma foto do evento de 82 anos atrás.

Bandeira de Israel em meio a protesto antidemocrático com participação do presidente Jair Bolsonaro, em Brasília
Bandeira de Israel em meio a protesto antidemocrático com participação do presidente Jair Bolsonaro, em Brasília - Ueslei Marcelino - 3.mai.20/Reuters

A ação da PF é parte do inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal para apurar a veiculação de notícias falsas e mirou diversos apoiadores de Bolsonaro.

No mesmo dia da operação, o AJC, criado em 1906, manifestou-se. Não se restringiu à mensagem de Weintraub, mas às sucessivas referências de autoridades do governo ao regime nazista e ao massacre de judeus.

“O repetido uso de menções ao Holocausto como arma política por autoridades do governo brasileiro é profundamente ofensivo para judeus de todo o mundo e um insulto para as vítimas e sobreviventes do terror nazista. Isso precisa parar imediatamente", declarou a entidade.

Em entrevista à Folha por email, o diretor-executivo do AJC, David Harris, afirmou que, por maiores que sejam os desafios do momento atual, não é possível fazer nenhum tipo de comparação com o nazismo, Adolf Hitler ou o Terceiro Reich.

“Aqueles que citam [esses termos] ignoram a história ou a distorcem de forma consciente. Qualquer que seja a motivação, o resultado é a desvalorização do significado destes fatos e a desonra de dezenas de milhões de vítimas de 12 anos de regime nazista”, afirmou Harris.

Para ele, “certamente há outras maneiras de se expressar sobre temas políticos, econômicos e sociais sem abusar da memória de milhões de vítimas dos crimes nazistas”.

“Como filho de dois sobreviventes do Holocausto, tenho alguma compreensão do que meus pais e muitos outros viveram durante a guerra”, disse.

Harris também fez uma crítica ao recente uso pelo governo federal de uma variação da frase “o trabalho liberta”, numa peça de propaganda defendendo a preservação de empregos durante a pandemia.

“Quando alguém hoje invoca as palavras ‘o trabalho liberta’ para se referir à importância de empregos, está usando as mesmas palavras que 1,1 milhão de mulheres, homens e crianças viram quando entravam nos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau”, disse.

Embora Bolsonaro se apresente como um aliado de Israel e tenha desenvolvido uma relação próxima com o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, as referências ao nazismo e ao Holocausto têm se repetido desde sua posse.

O presidente e o chanceler Ernesto Araújo já se referiram ao nazismo como um movimento de esquerda, o que não tem comprovação histórica.

Em janeiro deste ano, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim, foi demitido por imitar um discurso nazista, o que gerou forte repúdio nas redes sociais.

Meses depois, em abril, Ernesto comparou as medidas de isolamento social no Brasil para conter a pandemia de coronavírus aos campos de concentração nazistas.

Os sucessivos episódios levaram a embaixada de Israel no Brasil a pedir a interrupção dessas referências. “Pela amizade forte de 72 anos entre nossos países, pedimos que a questão do Holocausto fique à margem da política e ideologias", afirmou, em nota.

Isso ocorreu apesar de o embaixador israelense em Brasília, Yossi Shelley, ser bastante próximo de Bolsonaro, tendo inclusive já o acompanhado a estádios de futebol.

Embora relativamente pequena, reunindo em torno de 200 mil pessoas, a comunidade judaica no Brasil tem grande influência em setores da política e da economia.

Grande parte dela não esconde o incômodo com a vinculação de alguns de seus a Bolsonaro e aliados.

São exemplos o secretário de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten, e empresários como Meyer Nigri (Tecnisa) e Elie Horn (Cyrella). Bandeiras de Israel são frequentes em atos de apoiadores do presidente.

Principal representante da comunidade no país, a Conib (Confederação Israelita do Brasil) tem hoje relação tensa com o embaixador.

Segundo a Folha apurou, suas gestões junto ao ACJ foram importantes para que a entidade americana adotasse o posicionamento crítico a Bolsonaro.​

Para o diretor-executivo do ACJ, houve um “notável progresso na relação bilateral” com Bolsonaro e Netanyahu. Mas ele alerta que as constantes referências ao nazismo podem prejudicar essa realidade.

“Israel, como a única nação de maioria judaica do mundo e lar de centenas de milhares de sobreviventes do nazismo e seus descendentes, é, claramente, muito sensível a falsas comparações com a era nazista”, declarou Harris.

Segundo ele, incomoda muito aos judeus serem vistos como um bloco monolítico de pensamento, seja com relação a Bolsonaro, ou a outras figuras políticas.

“Sempre haverá diferenças de opiniões entre judeus, que é algo normal e esperado. O mesmo acontece nos EUA e em Israel. Como diz o ditado: ‘dois judeus, três opiniões’.”

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