Vídeo com ironias aos EUA reflete China mais assertiva em sua política externa

Com influência mundial, regime de Xi Jinping deixa de lado diplomacia discreta

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Washington e São Paulo

O governo da China decidiu escalar sua política externa em relação aos EUA e a outros países, na tentativa de fazer com que a pandemia acelere a mudança para o Oriente do eixo diplomático entre as duas potências.

Especialistas dizem que o processo já vinha ocorrendo devido à crescente importância econômica chinesa, mas que o regime tem se utilizado do coronavírus para passar uma imagem de provedor global durante a crise.

Isso acontece em um momento em que diplomatas e a agência de notícias ligada ao governo chinês sobem o tom de suas mensagens ao responder a críticas sobre a maneira com a qual o país conduziu a pandemia de coronavírus.

1. Boneco chinês diz: "Nós descobrimos um novo vírus"; boneco americano responde: "É apenas uma gripe"
Em vídeo divulgado pela agência de notícias estatal chinesa, um boneco chinês diz: "Nós descobrimos um novo vírus"; e o boneco americano, que lembra a Estátua da Liberdade, responde: "É apenas uma gripe" - Reprodução

O novo capítulo da disputa entre EUA e China começou no final de abril, quando a agência de notícias Xinhua, vinculada ao Partido Comunista, divulgou um vídeo em que zomba da forma como o governo americano lida com a crise, reforçando o mais recente campo de batalha entre os dois países.

Chamada de "Era uma vez um vírus", a animação em inglês mostra, em um minuto e meio, bonecos do tipo Lego representando chineses e americanos durante os principais acontecimentos da emergência sanitária.

"Descobrimos um novo vírus", diz o personagem chinês. "E daí?", responde uma figura da Estátua da Liberdade. "É perigoso", completa o representante da China. "É apenas uma gripe", emenda o lado americano.

No decorrer da animação, o personagem da Estátua da Liberdade passa a receber soro na veia enquanto seu rosto fica pálido, refletindo a piora da situação do coronavírus nos EUA conforme os meses passam.

A assertividade no tom do vídeo —visto mais de 1,6 milhão de vezes e retuitado por diplomatas chineses— é o reflexo de uma China mais confiante de sua posição no mundo, afirma o ex-diplomata Fausto Godoy, que atuou no país entre 1994 e 1997 e atualmente coordena o Núcleo de Estudos Asiáticos da ESPM.

“Essa nova China de Xi Jinping está cada vez mais audaz, mais segura do que está fazendo. Está se permitindo tomar atitudes internacionais que até 10, 15 anos atrás não ousaria, porque não se sentia capacitada para tanto”, afirma.

Assim, ficou no passado a China desenvolvimentista dos anos 1990, que recém se abria para o mundo e tinha como prioridade erradicar a fome. Naquele momento, "a diplomacia refletia esse estado de espírito: era mais discreta, terceiro-mundista", completa Godoy. Comunicados públicos em tom mais ríspido eram evitados em favor de negociações nos bastidores.

O boom na autoestima da China, prossegue, foi impulsionado pelo plano “Made in China 2025”.

Anunciado em 2015, dois anos após Xi assumir o poder, tem como meta transformar a China em um líder tecnológico global, incluindo setores como robótica, tecnologia aeroespacial e biotecnologia —este último estratégico no atual cenário.

O movimento chinês ganha contornos mais claros no momento em que Donald Trump retira os EUA do posto de agente de cooperação mundial e procura se defender das críticas sobre sua gestão da pandemia atacando Pequim.

O líder americano cortou o aporte financeiro que o país realizava à Organização Mundial da Saúde (OMS) e tem tentado alavancar a narrativa —contrariando evidências científicas— de que o novo coronavírus surgiu em um laboratório de Wuhan, de onde teria escapado antes de se espalhar pelo mundo.

Já Pequim tem conseguido ocupar espaços deixados pelos EUA, como o comando de agências da ONU (Organização das Nações Unidas), e acumulado influência sobre a OMS, oferecendo mais dinheiro à organização, em contraste ao movimento de Trump.

“Não digo que [o vídeo] é de confronto, e sim mais um artefato da guerra de narrativas sobre a origem da doença e como cada um dos países tem enfrentado a pandemia”, diz o cientista político Arnaldo Francisco Cardoso, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Segundo ele, o vídeo é eficiente em encapsular uma visão não só da China, mas da comunidade internacional como um todo, de que os EUA estão lidando com a crise de forma isolada e de que Trump se vale de teses absurdas.

Trump inicialmente minimizou a pandemia e ignorou alertas da inteligência americana sobre a gravidade do cenário ainda em janeiro. Atropelado pelos números, o presidente começou a dar gravidade à crise em março, quando decretou estado de emergência no país e defendeu medidas de distanciamento social até 30 de abril.

No fim do mês passado, porém, Trump voltou a defender a retomada econômica —já tinha flertado com a ideia antes da Páscoa, mas precisou recuar—, enquanto a cifra de casos de Covid-19 nos EUA só subia. Nesta quarta (6), são mais de 1,2 milhão de infectados e quase 73 mil mortos.

Em um contexto em que a disputa de narrativas acontece na internet, divulgar a animação na rede foi uma boa estratégia de comunicação para ocupar o espaço desse debate, acrescenta o professor do Mackenzie.

Para ele, é inútil rebater com argumentação razoável as retóricas do ataque e da propagação de fake news adotadas por Trump.

“Como você lida com a baixa qualidade do argumento norte-americano? Você não vai fazer uma demonstração científica, formal e acadêmica para contrapor a uma fala desse tipo [a referência ao vírus ter vindo de um laboratório chinês]. Quem vai ler? Um videozinho desse comunica muitíssimo melhor, justamente por encontrar uma linguagem simples.”

Para Cardoso, a diplomacia chinesa vem ajustando seu tom ao contexto. "Está mais incisiva no papel que pode desempenhar diante da debilidade demonstrada pelas outras potências, destacadamente os EUA."

O vídeo é o mais recente ato da China em uma série de reações às vezes agressivas a críticas.

Em março, após o deputado federal Eduardo Bolsonaro comparar a atuação do regime chinês na pandemia ao episódio do acidente nuclear de Tchernóbil, a conta da embaixada da China no Brasil publicou nota afirmando que o deputado havia contraído “vírus mental” e que estava “infectando a amizade entre os nossos povos”.

Na mesma ocasião, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, fez duras críticas a Eduardo, filho do presidente Jair Bolsonaro, dizendo que a comparação era “um insulto maléfico contra a China e o povo chinês” e exigindo um pedido de desculpas.

Dias depois, a embaixada classificou como "absurda e desprezível" e de “cunho fortemente racista” uma postagem na qual o ministro da Educação, Abraham Weintraub, ridicularizou a maneira de muitos asiáticos ao falar português e acusou o país de se beneficiar na crise.

No final de abril, Cheng Jingye, embaixador da China na Austrália, disse em uma entrevista que o "público chinês" poderia passar a evitar produtos e universidades australianas. Foram ameaças veladas depois de a Austrália pedir investigação sobre a origem da Covid-19, cujos primeiros casos foram registrados na cidade chinesa de Wuhan.

Em relação ao tom recente das declarações chinesas, Godoy afirma que “nenhum diplomata faz uma coisa dessas sem respaldo, o ônus é muito grande”. Ou seja: Pequim provavelmente emitiu uma ordem para que ofensas —venham elas do presidente americano ou de políticos brasileiros e australianos— fossem rebatidas pela chancelaria.

“É uma China poderosa, competindo quase com igualdade de força com os EUA."

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