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Em desfile militar grandioso, Putin reescreve história de olho no presente

Em meio à pandemia, russo coincide parada da vitória na 2ª Guerra com referendo para ficar no poder

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São Paulo

Ao comandar o mais grandioso desfile do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial nos seus 20 anos de poder, o presidente russo, Vladimir Putin, consolidou sua ofensiva para reescrever a história daquele conflito de olho na narrativa de seu presente.

Soldados russos marcham na parada do Dia da Vitória na praça Vermelha, coração de Moscou
Soldados russos marcham na parada do Dia da Vitória na praça Vermelha, coração de Moscou - Ramil Sitdikov/via Reuters

Há 75 anos, a então União Soviética liderou o esforço com os Aliados ocidentais para a derrota da Alemanha nazista.

A parada militar do coronavírus, como foi apelidada por críticos da oposição, transcorreu nesta quarta (24) apesar de a Rússia seguir como o terceiro país mais atingido pela pandemia, atrás de EUA e Brasil.

São mais de 600 mil casos e um número relativamente baixo de mortos, 8.500, atribuído a métodos criativos de contabilidade funerária russa por céticos e a um sistema mais preciso de aferição, segundo o Kremlin.

Em Moscou, Putin e veteranos idosos que passaram por quarentena sentaram-se lado a lado, sem máscaras. Não havia o tradicional público na rua, e quem foi à praça Vermelha ganhou proteções e sentou-se com duas cadeiras de separação do vizinho no palanque junto à muralha do Kremlin.

O desfile ocorreu uma semana antes do referendo sobre um pacote de mudanças constitucionais diversas, mas que tem em um item seu ponto central: permitirá zerar a contagem de mandatos presidenciais para Putin, abrindo caminho para ele disputar a eleição de 2024 e, se reeleito, a de 2030.

A abertura gradual das cidades russas, após quarentenas vistas como tardias, e a parada foram vistas como incentivos para que a população participe do referendo —além de relatos de fraudes em votos antecipados, que começam nesta quinta (25), e pressão sobre servidores públicos.

Com a popularidade em 59%, alta para padrões ocidentais, mas a mais baixa de sua carreira, Putin precisa de um comparecimento grande às urnas. Mesmo pesquisas independentes sugerem que as mudanças serão aprovadas.

Ficar no poder até os 83 anos, em 2036, sempre foi algo contra o que o jovial Putin defendia quando ascendeu ao cargo de primeiro-ministro em 1999, sendo eleito presidente pela primeira de quatro vezes no ano seguinte. A mais recente, em 2018.

Como czar moderno, contudo, ele progressivamente moldou a política russa à sua imagem. E parte central dessa construção será entronizada na Constituição se o referendo assim deixar: a Rússia precisa defender a sua verdade histórica e a difamação dos feitos de seus heróis será criminalizada.

Ao longo dos anos, Putin substitui a nostalgia comunista pós-soviética pelo fervor patriótico e a exaltação de valores russos tradicionais.

O Dia da Vitória, 9 de maio porque em Moscou já tinha passado da meia-noite quando a Alemanha capitulou em Berlim ao fim do conlfito lá chamado de Grande Guerra Patriótica, virou data sacra.

A parada foi remarcada devido à pandemia para o dia em que ocorreu o primeiro desfile da vitória em 1945, com históricas cenas de estandartes nazistas sendo jogados ao chão por tropas do marechal Georgi Jukov (1896-1974) —cuja estátua equestre celebrando aquele dia está à junto à entrada a praça Vermelha.

Bombardeiro estratégico Tu-160 voa sobre Moscou na parada do Dia da Vitória
Bombardeiro estratégico Tu-160 voa sobre Moscou na parada do Dia da Vitória - Vladimir Astapkovitch/via Reuters

Os heróis, disse Putin no discurso desta quarta, "defenderam sua terra, libertaram os Estados europeus, salvaram o povo da Alemanha do nazismo e de sua ideologia". "É impossível imaginar o que teria acontecido ao mundo se o Exército Vermelho não tivesse se colocado no caminho do fascismo", completou.

Putin está certo. Os Aliados ocidentais não teriam ganho a guerra, ao menos em 1945, sem os comunistas do leste fazendo o trabalho mais pesado –68% dos russos atuais perderam algum parente na guerra, que matou 27 milhões de soviéticos, de longe o povo mais sacrificado entre os talvez 70 milhões de mortos do conflito.

O demônio mora nos detalhes. Desde o ano passado, o presidente tem intensificado uma ofensiva para fazer valer o que será agora constitucionalmente a tal verdade histórica. Resumidamente, quer equivalência moral entre os Acordos de Munique de 1938 e o pacto nazi-soviético de 1939.

Munique é ensinada no Ocidente como erros de Reino Unido e França para apaziguar Adolf Hitler (1889-1945) às expensas de terras habitadas por alemães étnicos na Tchecoslováquia, enquanto o acordo de 1939 é visto como um aperto de mãos entre Belzebu e Satã.

Na Rússia de Putin, o pacto Molotov-Ribbentropp (em referência aos chanceleres que o celebraram) foi uma defesa contra uma guerra comprada no ano anterior pelos Aliados. É meia verdade, dado que em Munique não foi combinada secretamente a partilha da Europa Oriental como fizeram nazistas e soviéticos.

Quatro MiG-31K equipados com mísseis hipersônico Kinjal sobrevoam a praça Vermelha
Quatro MiG-31K equipados com mísseis hipersônicos Kinjal sobrevoam a praça Vermelha - Iuri Kadobnov/AFP

Além disso, o presidente russo com isso minimiza a incompetência militar do ditador soviético Josef Stálin (1878-1953). Ele apostou que Hitler se meteria em um atoleiro de trincheiras ao atacar primeiro o flanco ocidental, como a Alemanha fez na Primeira Guerra.

Tendo fuzilado boa parte de sua elite militar no fim dos anos 1930, Stálin descontou o avanço da guerra mecanizada —em 1940, só os britânicos resistiam ainda aos nazistas. O tempo que achou que ganharia esvaiu-se.

Assim, os avanços quando Hitler o traiu em 1941 foram enormes e desastrosos para a União Soviética, que só não caiu porque seu vasto território e recursos cumulativos eram inconquistáveis ao fim —e o ditador nazista insistiu num megalômano assalto frontal ao país.

Putin vai além, apontando o dedo para países como a Polônia e a Ucrânia, acusando seus colaboradores do nazismo. Aqui, ele traz sensibilidades atuais à mesa, já que os poloneses são a linha-dura da Otan (aliança militar ocidental) ante Moscou.

E a Ucrânia teve a Crimeia amputada e o leste convulsionado a partir de 2014 por ordens de Putin, visando evitar a tomada política do Ocidente sobre o país.

Estabelecendo-se como defensor de um passado idealizado, onde os erros de Stálin e atrocidades como o massacre da oficialidade polonesa em Katyn são notas de rodapé, Putin busca legitimar sua posição interna.

Lançador do míssil balístico intercontinental RS-24 Iars participa do desfile em Moscou
Lançador do míssil balístico intercontinental RS-24 Iars participa do desfile em Moscou - Ilia Pitalev/via Reuters

Para o público externo, suas palavras foram mais contidas desta vez. Ele agradeceu e disse "honrar todos os Estados" que ajudaram os soviéticos a ganhar a guerra e exaltou a cooperação internacional em nome da paz, em oposição ao isolacionismo dos EUA da era Donald Trump.

Mas o real recado estava na praça e nos céus moscovitas. Após o tradicional desfile de armas antigas, encabeçado pelos legendários tanques T-34, Putin ofertou o clássico show de poderio militar.

Quatro interceptadores MiG-31 voaram com mísseis hipersônicos Kinjal no ventre, e o caça avançado Su-57 integrou o contingente de 55 aviões e 20 helicópteros presente. Os ameaçadores bombardeiros estratégicos Tu-160 e Tu-95 marcaram a usual presença.

No chão, foi apresentado o novo lança-foguetes TOS-2, baseado no tanque de nova geração T-14 Armata, e a usual exibição fálica de mísseis intercontinentais com capacidade nuclear, apropriada para o masculino ambiente militar.

Unindo-se às armas, 14 mil soldados testados e quarentenados, inclusive contingentes convidados de 13 países, incluindo China e Índia, que se estranharam numa disputa fatal nos Himalaias na semana passada mas que são aliados russos.

A pandemia, contudo, ofuscou o plano putinista de celebrar o zênite de seu poder com reforço externo. Líderes que participariam do evento, como Xi Jinping (China) e Emmanuel Macron (França), ficaram em casa.

Mesmo entre a dúzia que veio, houve uma baixa: o presidente do Quirguistão foi embora quando dois assessores foram confirmados com Covid-19 ao chegar a Moscou.

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