A divisão nos Estados Unidos entre pessoas de cidades maiores, mais intelectualizadas, ricas e progressistas contra as de áreas rurais, empobrecidas e em atividades declinantes acentuou-se ainda mais na eleição de 2020, que deu vitória ao democrata Joe Biden.
A clivagem do eleitorado confirma o que alguns estudiosos da desigualdade vêm apontando: políticos mais voltados à esquerda, com ideias liberais nos costumes, têm atraído substancialmente mais eleitores que se deram bem com a globalização.
Por outro lado, os representantes da direita estão cada vez mais entrincheirados com os perdedores do processo econômico global e os mais conservadores.
Análise da eleição nos EUA realizada pela Brookings Institution, tradicional “think tank” de Washington, revela que os 477 condados onde Biden venceu representam cerca de 70% da produção econômica norte-americana.
Em contraposição, os 2.497 onde o republicano Donald Trump se saiu melhor respondem por somente 30% do PIB (Produto Interno Bruto).
Na eleição de 2016, essa divisão ficou entre 64% das áreas mais dinâmicas votando em Hillary Clinton e 36% das mais atrasadas, em Trump —quando o republicano venceu.
Os dados sugerem que, embora derrotado agora, Trump conseguiu mobilizar ainda mais eleitores nas regiões empobrecidas e conservadoras dos EUA, aumentando a polarização de uma parcela significativa da população.
Nesta eleição, Trump conquistou os condados de pequenas cidades e comunidades rurais com economias minúsculas. As que votaram em Biden são áreas mais diversificadas, educadas, metropolitanas e repletas de profissionais que trabalham em escritórios de empresas modernas.
No agregado, a participação de universitários pró-Biden foi de 35%; pró-Trump, de 25%.
Neste ano, Biden conseguiu capturar ainda metade dos dez condados economicamente mais significativos que Trump ganhou em 2016.
Um dos principais estudiosos da desigualdade hoje, o francês Thomas Piketty vem assinalando que os partidos de esquerda ou centro-esquerda estão se tornando representantes das elites metropolitanas e instruídas.
Como suas bases tradicionais das classes trabalhadoras estão desaparecendo, a influência dos profissionais globalizados, do setor financeiro e dos interesses corporativos, cresceu.
Em seu novo livro, “Capital e Ideologia”, recém-lançado no Brasil, Piketty usa um termo relacionado a castas, “esquerda brâmane”, para definir esses vencedores da globalização, que desfrutam agora de muito mais benefícios que os trabalhadores de atividades em decadência.
O problema dessa nova configuração da centro-esquerda ou esquerda é que muito eleitores bem-sucedidos têm ampliado, por exemplo, a resistência a uma tributação mais progressiva —que poderia ser aplicada para financiar programas de apoio aos que estão ficando para trás, como é o caso dos eleitores de Trump.
O cientista político David Soskice, diretor do International Inequality Institute na London School of Economics, vai na mesma linha de Piketty ao observar que a desigualdade de renda no mundo vem aumentando por uma combinação de mudanças tecnológicas e nas estruturas produtivas, com a ascensão de uma elite intelectual mais bem educada nas grandes cidades.
Em contraposição, a antiga classe média que vivia de empregos em fábricas ou de propriedades rurais modestas está se tonando cada vez mais empobrecida e excluída —o que favorece o apego a valores tradicionais e a repulsa a imigrantes, por exemplo.
Uma das questões principais desse novo ordenamento, que tende a ampliar a polarização, é que, além de essa nova elite de centro-esquerda ser refratária a financiar com seus impostos o resgate dos que ficaram para trás, ela frequentemente despreza a visão de mundo (aborto, armas, sexualidade, religião) dos menos favorecidos.
Como a análise da Brookings Institution sugere, o fato de esses dois tipos de eleitores estarem também geograficamente separados nos EUA não favorece a promessa de Joe Biden de governar para todos, sem distinção entre estados azuis e vermelhos.
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