Descrição de chapéu machismo

'Não é só pelo aborto; nosso limite foi ultrapassado', diz líder de movimento na Polônia

Integrante da Greve das Mulheres, Bozena Przyluska afirma que jovens não vão mais aturar tentativa de impôr leis religiosas

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Bruxelas

A palavra de ordem dos protestos é “foda-se!”. Nas máscaras anticoronavírus dos manifestantes, o dedo do meio substitui a letra i na sigla PiS, do partido governista polonês.

Raios vermelhos, símbolos da Greve das Mulheres, estão por toda parte, e a frase “isto é guerra” apareceu nos primeiros cartazes quando milhares foram às ruas em 22 de outubro.

Naquele dia, uma decisão do Tribunal Constitucional inviabilizou na prática o aborto legal na Polônia. O julgamento, porém, foi “apenas a gota d’água”, diz Bozena Przyluska (pronuncia-se Boshena Pshyouska), 44, cofundadora e membro do Conselho Consultivo, movimento que uniu ativistas de várias áereas.

“O que está acontecendo agora é um movimento de homens e mulheres jovens que não concordam com as proibições que querem nos impor, com as normas ainda mais religiosas que as que já temos”, afirma a ativista em entrevista por telefone, de Varsóvia.

Moça de cabelos presos com máscara preta com a palavra PIS, sendo que no lugar do i há um dedo do meio em riste
Manifestante usa máscara com o dedo do meio no lugar da letra i em sigla do partido governante da Polônia, Lei e Justiça (PiS), em protesto contra endurecimento da proibição ao aborto - Kacper Pempel - 24.out.20/Reuters

Neste mês, 65% dos poloneses disseram ser contra a interferência da igreja na vida do país, segundo pesquisa do jornal Dziennik Gazeta Prawna. Mesmo entre os católicos praticantes, 50% afirmaram desaprová-la. Na mesma pesquisa, dois terços da população disseram apoiar os protestos.

Líder do movimento contra o ensino religioso nas escolas polonesas, Przyluska se tornou também símbolo da luta pelo direito ao aborto ao declarar em rede social que havia interrompido uma gravidez, em abril. O post recebeu 9.000 curtidas e foi compartilhado 1,6 milhão de vezes em um único dia.

A mobilização das últimas semanas, que levou cerca de 100 mil manifestantes à marcha da Greve das Mulheres, em 30 de outubro, fez o governo acenar com uma mudança na lei, que permitiria o aborto quando o feto não tivesse chance de sobreviver fora do útero.

O suposto recuo não convence, diz Przyluska: “Nos últimos quatro anos o governo vem aprovando leis que ferem nossa dignidade, e não podemos mais aturar isso. Nosso limite foi ultrapassado, os atos não vão enfraquecer”. Ela não tem ilusões, porém, que as manifestações se sustentem por muito tempo.

Por isso, o conselho quer agir rapidamente para “direcionar a energia que extravasou” para uma rede virtual: “Queremos que seja uma voz política, não apenas a voz nas ruas”.

Przyluska, que concorreu ao Parlamento pela Esquerda (Lewica) nas últimas eleições, afirma que o movimento atual não é partidário. “Qualquer partido pode nos apoiar, mas nós não apoiaremos nenhum.”

Bozena Przyluska durante entrevista coletiva em frente ao Parlamento, em Varsóvia
Bozena Przyluska durante entrevista coletiva em frente ao Parlamento, em Varsóvia - Jaap Arriens - 31.jan.19/NurPhoto via AFP

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No começo deste mês, o presidente polonês, Andrzej Duda, propôs enviar uma nova lei reduzindo as restrições ao aborto. Considera uma vitória dos protestos? Não. Eles estão apenas tentando convencer a opinião pública de que estão cedendo. Os que estão na rua agora não vão mais ceder a esses ilusionismos. O suposto recuo do governo não reduziu os protestos nem vai interrompê-los. Nosso limite foi ultrapassado.

É mais que só sobre o aborto? Sim, as pessoas querem dignidade. Nos últimos quatro anos o governo vem aprovando leis que ferem nossa dignidade, e não podemos mais aturar isso. Não é só por causa do aborto, é pela vida sob um governo ultraconservador de ultradireita. Essa foi apenas a última gota d’água.

Não temos acesso a contraceptivos sem prescrições, por exemplo. A Polônia é talvez o único país da Europa em que uma mulher não pode comprar a pílula do dia seguinte. Estamos indo em direção a um Estado confessional, um Estado religioso em que as duas dimensões viram uma só.

O homem-forte do governo, Jaroslaw Kaczynski, conclamou os poloneses a defender a igreja dos manifestantes. Os protestos são contra a igreja? O problema é a falta de separação, é o Estado ter deixado a Igreja Católica dizer o que é certo e o que é errado. É o governo decidir que a lei civil deve seguir a lei religiosa. Talvez a população mais velha esteja pronta a aceitar isso, mas os jovens são um tipo completamente diferente de cidadãos.

Eles têm smartphones no bolso e podem ver, todos os dias, a todo minuto, o que seus colegas da Europa Ocidental estão fazendo. E querem viver como eles. Esta é uma revolução para os jovens, que não concordam de forma alguma com a direção que o governo tomou.

E até onde irão os protestos? Quais são as exigências? O que está acontecendo agora nas ruas é muito mais que a Greve das Mulheres, é um movimento de homens e mulheres jovens que não concordam com as proibições que querem nos impor, com as normas ainda mais religiosas do que as que já temos.

Não estamos planejando nada. Estamos tentando direcionar a energia que extravasou para que ela ganhe sentido, para que seja uma voz política, não apenas a voz nas ruas.

É óbvio para todos que o protesto não pode durar para sempre, não vai durar até a primavera [no hemisfério norte]. As pessoas se cansam, tem a pandemia, portanto temos que agir rapidamente e nos transformar em um movimento político, passar para o mundo virtual as atividades que agora estão acontecendo nas ruas. Mantê-las como movimento político, sem precisar das manifestações.

A ideia e criar um movimento digital? Exato, estamos criando uma rede conectada, formulando os postulados, organizando as demandas, dando direção à frustração e à raiva. Não se trata de direitos das mulheres, mas de demandas progressistas: o que as pessoas querem é Estado secular, política ambiental contra a mudança climática, proteção do trabalho —algo que está cada vez mais em risco.

Pretendem transformar essa voz política em um movimento partidário? Não vamos apoiar nenhum partido. A única área em comum entre todos nós são as demandas progressistas, e política é muito mais que isso. Qualquer partido pode nos apoiar, se quiser, mas nós não vamos apoiar ninguém.


RAIO-X

Bozena Przyluska, 44

Confundadora e integrante do Conselho Consultivo, criado neste mês para conectar os movimentos que protestam por direitos progressistas. Faz parte também da Greve das Mulheres, movimento criado em 2016 pela defesa do direito ao aborto e pelos direitos das mulheres, e é cofundadora do Congresso de Secularidade Polonês, no qual combate a doutrinação religiosa em escolas polonesas.

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