Descrição de chapéu América Latina

Crise institucional provocada por Bukele reflete atrofia da democracia de El Salvador

Em carta, cerca de 20 ex-presidentes condenam 'o colapso do Estado de Direito' no país

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Buenos Aires

Na última segunda-feira (3), o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, reuniu embaixadores estrangeiros para tentar explicar o que está ocorrendo no país. Dois dias antes, na estreia do novo Congresso, agora controlado pelo líder salvadorenho, cinco juízes que compõem o Tribunal Constitucional e o procurador-geral foram destituídos por meio de um dispositivo constitucional.

Embora previsto na Carta do país, o movimento abrupto deixou no ar, outra vez, a suspeita de que Bukele busca uma gestão autoritária com verniz de legalidade —os magistrados se opunham a políticas do presidente. Os juízes exonerados eram contrários, por exemplo, a medidas que pareciam visar o controle da Covid-19, mas que, na verdade, tinham como objetivo o controle político de opositores.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, participa de uma reunião com embaixadores credenciados na Casa Presidencial em San Salvador
O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, participa de uma reunião com embaixadores credenciados na Casa Presidencial em San Salvador - 5.mai.2021/Reuters

Em locais sem água, comida e remédios, o governo isolou à força pessoas acusadas de violar a quarentena obrigatória. Muitos entraram nesses centros sem passar por protocolos sanitários nem data para sair. Antes, o presidente já havia desafiado a institucionalidade do país ao ocupar, com o apoio de militares, a sede do Congresso para pressionar pela aprovação de um empréstimo para a área de segurança. A ação, na qual Bukele se sentou na cadeira do então presidente da Casa, contou com a participação de soldados armados e agentes da tropa de choque.

Na reunião com os embaixadores, o presidente reclamou da repercussão no exterior que a destituição dos magistrados ganhou e chegou a dizer que os representantes diplomáticos estão "informando mal os seus países". O presidente também se mostrou surpreso com a condenação internacional e afirmou que as decisões da Assembleia foram de acordo com a Constituição. "Segue havendo separação de Poderes."

No dia seguinte ao encontro, Bukele, bem ao estilo populista que o caracteriza, ousou. Exibiu o vídeo da reunião em cadeia nacional, o que gerou repúdio de diversos presentes no compromisso. O embaixador do Chile em San Salvador, Renato Sepúlveda, polido, lamentou a transmissão "em desacordo com os acordos prévios, sem a presença da imprensa e de modo privado".

Já o embaixador da União Europeia, Andreu Bassols, foi irônico: "Obrigado, presidente Bukele, por colocar a reunião em cadeia nacional. No próximo dia 9 de maio será o dia da Europa, e exibiremos um excelente programa nosso na TV pública salvadorenha. Exigimos que seja em cadeia nacional".

O vídeo do encontro também revelou que Bukele, além de atacar veículos internacionais —"dão muito espaço para versões opositoras"—, incomodou-se com a ausência de Brendan O'Brien, encarregado de negócios da embaixada dos EUA no país. Para o presidente, ao negar o convite, o americano demonstrava a insatisfação do governo Biden com as decisões salvadorenhas, constatação reforçada pela declaração da vice Kamala Harris, para quem El Salvador tem de responder pela destituição dos magistrados.

Nesta quinta (6), cerca de 20 ex-presidentes, incluindo Felipe Calderón e Vicente Fox, do México, Álvaro Uribe e Andrés Pastrana, da Colômbia, Mauricio Macri, da Argentina, e Luis Alberto Lacalle, do Uruguai, divulgaram uma carta na qual condenam "o colapso do Estado de Direito em El Salvador".

A instabilidade regional preocupa especialmente a gestão Biden, que tem como um de seus principais problemas relacionados à América Latina o fluxo de imigrantes que tentam entrar nos EUA de modo irregular.

Em geral, são pessoas que escapam de terríveis situações humanitárias. Os países do chamado Triângulo do Norte (El Salvador, Honduras e Guatemala) lidam com a ação de grandes facções criminosas, as "maras", que já possuem mais de 70 mil integrantes nos três países, segundo a ONG Insight Crime.

Ironicamente, as "maras" foram formadas por jovens salvadorenhos expulsos dos EUA nas gestões de Bill Clinton e George W. Bush e que, ao retornarem a El Salvador, encontraram um país ainda em recuperação dos danos econômicos e políticos da guerra civil (1980-1992). Esses jovens, então, passaram a integrar facções criminosas, principalmente a Mara Salvatrucha e o Barrio-18.

As "maras" tomaram vários setores da economia, como o comércio, a indústria e o transporte, que têm de pagar propinas a essas gangues para funcionar. No campo, esses grupos recrutam jovens e destroem povoados, formando o panorama por trás do enorme fluxo de centro-americanos aos EUA.

Desde que Bukele assumiu o poder, em 2019, houve significativa queda na violência provocada pelas "maras". Veículos independentes locais, no entanto, apontam que a diminuição se deu porque o presidente teria feito um acordo com as facções. Nesse pacto, os grupos criminosos poderiam continuar cobrando suas taxas, desde que reduzissem o número de assassinatos. Seja como for, a melhora nos dados de segurança se reflete no alto índice de popularidade de Bukele —85,9%, de acordo com o LPG Datos.

Na América Central, outros países enfrentam conflitos que envolvem diferentes Poderes. A Guatemala viu a população sair às ruas em novembro em protesto ao engavetamento, por parte da Corte Suprema, de processos de corrupção envolvendo membros do Legislativo.

Em Honduras, o presidente Juan Orlando Hernández pressionou a Justiça para abafar denúncias de corrupção e narcotráfico. Fora do Triângulo do Norte, a Nicarágua vive uma ditadura, comandada pelo ex-líder revolucionário Daniel Ortega. Ali, onde a Corte Suprema está subjugada ao Executivo, não atuam as "maras", mas nicaraguenses fogem da perseguição política e da crise econômica agravada pela pandemia.

Bukele despontou no cenário político ao se eleger prefeito de San Salvador, em 2015. Para o pleito presidencial, construiu um personagem que se apresentava como um outsider, embora tenha começado a militar na esquerdista Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). Na nova roupagem, que inclui boné para trás e roupas informais, Bukele passou a pregar uma gestão sem ideologias.

Afastou-se da FMLN, cujos ex-presidentes recentes são acusados ou enfrentam processos de corrupção, e da Arena, partido de direita que apoiava os militares durante a guerra civil. Ambas as forças políticas vinham sofrendo desgaste popular ao não encontrarem uma maneira de melhorar a crise econômica do país e ao não solucionarem a questão da violência com a predominância das "maras".

Filho de um rico empresário de origem palestina, Bukele, ao assumir, demitiu funcionários de carreira da administração pública e, no lugar deles, colocou nomes sem ligação com governos anteriores —arregimentados por irmãos e primos do presidente. Para Óscar Martínez, jornalista do Faro, a carreira política de Bukele sempre foi marcada pelo autoritarismo. "São dois pilares que o sustentam: a alta popularidade, que ele alimenta por meio de seu estilo e humor, e o enfraquecimento da oposição."

Para outro especialista nos conflitos da América Central, o americano Jon Lee Anderson, o eleitorado de Bukele vê nele um ídolo "quase religioso". "Nos anos pré-guerra civil, El Salvador era quase um país feudal e sempre foi muito conservador e religioso. De certo modo, isso ainda permanece, e é o contexto propício para o surgimento de um líder como ele, com apelo quase religioso."

As decisões de Bukele em geral são anunciadas pelo Twitter. Pede aos comandantes das Forças Armadas que realizem determinada ação, e os subordinados respondem com "sim, senhor" —também nas redes.

Bukele vem procurando meios de sufocar veículos de comunicação economicamente. Na quarta (5), a Assembleia Nacional reformou uma lei de redução de impostos que beneficiava jornais. De acordo com uma regra de 1950, jornais, revistas e livros vinculados à “livre difusão do pensamento” podiam importar papel e tinta sem pagar impostos.

Agora, a nova norma estabelece que as empresas jornalísticas “não gozarão de isenção tarifária na importação de matérias-primas, máquinas e equipamentos para impressão de materiais ou publicações que não se destinem diretamente a fins educacionais”.

O alvo, claro, são as publicações independentes que denunciaram os tratamentos abusivos em centros de detenção e os sinais da trégua acordada entre Bukele e as "maras". Com o controle do Congresso —o partido do presidente e aliados formam dois terços da Assembleia Nacional—, Bukele tem vantagem para aprovar propostas e mudar leis. Na falta de uma oposição forte, as instituições se tornaram os inimigos.

Num primeiro momento, os juízes destituídos alegaram inconstitucionalidade nas exonerações, mas logo depois se afastaram do debate e já não defendem a permanência no cargo. "Se havia dúvida de que Bukele não se preocupa com um governo com pesos e contrapesos, ela se dissipou agora", diz Martínez.

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