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Atentado no Afeganistão mostra que Estado Islâmico e Al Qaeda ainda conseguem semear caos

Especialistas temem que governo do Talibã transforme país em terreno fértil para terroristas

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Ben Hubbard, Eric Schmitt e Matthew Rosenberg
Doha (Qatar) | The New York Times

O pesadelo que não deixava especialistas em contraterrorismo dormir à noite, antes mesmo do retorno do Talibã ao poder, era que o Afeganistão se tornasse terreno fértil para grupos terroristas, especialmente a Al Qaeda e o grupo Estado Islâmico (EI).

Duas explosões reivindicadas pelo ramo afegão do Estado Islâmico que fizeram dezenas de mortos em Cabul na quinta-feira (26), incluindo militares americanos, intensificaram o receio de que esse pesadelo esteja rapidamente virando realidade.

A person wounded in a bomb blast outside the Kabul airport in Afghanistan on Thursday, Aug. 26, 2021, arrives at a hospital in Kabul. The Pentagon confirmed at least two blasts outside the Kabul airport and said there were a number of casualties, after Western governments warned of a security threat there. (Victor J. Blue/The New York Times)
Homem ferido é resgatado após atentado no aeroporto de Cabul, no Afeganistão, que deixou mais de 100 mortos - Victor J. Blue/The New York Times

“Nem tenho como dizer o quanto isto é assustador e deprimente”, disse Saad Mohseni, proprietário do Tolo, um dos canais de TV mais populares do Afeganistão. “A impressão é a de que esse pessoal voltou à sua atividade normal –mais explosões, mais ataques–, só que agora teremos que enfrentar tudo isso sob um regime do Talibã.”

Vinte anos de ação militar dos Estados Unidos e de seus parceiros internacionais para tentar erradicar o terrorismo impuseram grandes perdas à Al Qaeda e ao EI, matando muitos de seus combatentes e líderes e, em grande medida, impedindo-os de controlar território.

Mas, segundo especialistas em terrorismo, os dois grupos mostraram ser capazes de se adaptar, convertendo-se em organizações mais difusas que continuamente buscam novos pontos de conflito locais onde possam fincar raízes e colocar seu extremismo violento em ação.

As explosões suicidas duplas lançadas perto do aeroporto de Cabul na quinta-feira destacam o poder devastador que esses grupos ainda possuem de provocar mortes em massa, não obstante o esforço americano. E levantam perguntas angustiantes sobre se o Talibã será capaz de cumprir a promessa principal que fez quando, no início de 2020, a administração Trump se comprometeu a retirar as forças americanas do Afeganistão: que o país deixaria de funcionar como plataforma de lançamento de ataques contra os EUA e seus aliados.

A tomada relâmpago do país pelo grupo não infunde nenhuma confiança na ideia de que todos os militantes do Afeganistão estejam sob o controle do Talibã. Pelo contrário, a filial do EI no Afeganistão –conhecida como Estado Islâmico Khorasan, ou EI-K— é uma rival amarga, embora muito menor, que já desferiu dezenas de ataques neste ano no Afeganistão contra civis, autoridades e o próprio Talibã.

Um relatório das Nações Unidas concluiu em junho que nos meses que antecederam a retirada das forças americanas, algo como 8.000 a 10 mil combatentes jihadistas da Ásia Central, da região do norte do Cáucaso, na Rússia, do Paquistão e da região de Xinjiang, no oeste da China, foram ao Afeganistão. A maioria está ligada ao Talibã ou à Al Qaeda, que são estreitamente vinculados.

Mas outros desses combatentes estão ligados ao EI-K, representando um desafio enorme à estabilidade e à segurança que o Talibã promete garantir para o país.

Ao mesmo tempo em que especialistas em terrorismo duvidam que combatentes do EI no Afeganistão tenham a capacidade de prepararar ataques em grande escala contra o Ocidente, muitos dizem que o Estado Islâmico hoje é mais perigoso que a Al Qaeda em mais pontos do mundo.

“Está claro que o Estado Islâmico é o perigo maior no Iraque e na Síria, na Ásia e na África”, observou Hassan Abu Hanieh, especialista em movimentos islâmicos junto ao Politics and Society Institute, em Amã, na Jordânia. “É evidente que o EI está mais amplamente distribuído e que é mais atraente para as novas gerações.”

Na quarta-feira (25), autoridades americanas haviam avisado sobre ameaças específicas vindas do grupo, incluindo o risco de ele enviar homens-bomba para se infiltrar na multidão aglomerada em volta do aeroporto internacional Hamid Karzai, em Cabul.

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Esse perigo parece ter sido um dos fatores que influíram na decisão do presidente Joe Biden de manter seu prazo final de 31 de agosto para completar a retirada de todas as forças americanas do país.

“Cada dia que permanecemos em campo é mais um dia que sabemos que o EI-K está procurando mirar contra o aeroporto, atacar forças americanas e aliadas e civis inocentes”, disse Biden na quarta-feira.

Criado seis anos atrás por combatentes paquistaneses do Talibã insatisfeitos, neste ano o Estado Islâmico Khorasan intensificou tremendamente o ritmo de seus ataques, segundo o relatório da ONU.

As fileiras do grupo diminuíram para algo entre 1.500 e 2.000 combatentes, cerca de metade do que possuía em seu pico, em 2016, antes de ataques aéreos dos EUA e de comandos afegãos terem dizimado muitos de seus líderes.

Mas desde junho de 2020 o grupo é liderado por um comandante novo e ambicioso, Shahab al Muhajir, que vem tentando recrutar talibãs insatisfeitos e outros militantes. O EI-K “continua ativo e perigoso”, segundo o relatório da ONU.

O Estado Islâmico no Afeganistão tem sido sobretudo antagônico ao Talibã. Em alguns momentos, os dois grupos disputaram terreno, especialmente no leste do Afeganistão, e recentemente o EI criticou a tomada do Afeganistão pelo Talibã. Alguns analistas dizem que combatentes de redes do Talibã chegaram a desertar para ingressar no EI no Afeganistão, acrescentando combatentes mais experientes às fileiras do EI-K.

A história do EI revela como pode ser difícil fechar ou conter redes terroristas. O grupo surgiu como ramo da Al Qaeda após a invasão americana do Iraque em 2003, mas mais tarde se separou da Al Qaeda, criando um chamado califado, ou regime teocrático islâmico, em grandes partes do Iraque e Síria, que em seu auge dominou uma superfície comparável à do Reino Unido.

A visão extremista de expansão global do EI, seu uso extenso de redes sociais e de violência de caráter cinematográfico, atraíram combatentes de todo o mundo, inspirando ataques letais em cidades árabes, europeias e americanas e levando os EUA a formarem uma coalizão internacional para combatê-lo.

Enquanto os EUA e seus aliados bombardeavam os principais territórios do grupo, o EI formou “filiais” em outros países. Muitas dessas filiais —incluindo na África ocidental e central, no Sinai e no sul da Ásia— permanecem ativas depois de o EI ter perdido seu último pedaço de território na Síria, em março de 2019.

Também a Al Qaeda mudou muito desde o tempo em que Osama bin Laden comandava a organização e difundia suas ideias por meio de declarações filmadas em vídeo e entregues a estações de televisão.

Também ela criou filiais, no Iêmen, no Iraque, na Síria e em partes da África e da Ásia, algumas das quais modificaram ou até descartaram a ideologia do grupo em favor de seus objetivos locais. O líder atual do grupo, Ayman al Zawahri, está velho. Acredita-se que esteja adoentado e que viva em algum lugar do Afeganistão, não tendo conseguido igualar-se à estatura de Bin Laden entre os radicais islâmicos.

De modo geral, a Al Qaeda não conservou o mesmo controle operacional que o Estado Islâmico sobre suas filiais, fato que pode ter conferido uma vantagem ao EI, segundo Hassan Hassan, co-autor de um livro sobre o Estado Islâmico e editor chefe da Newlines Magazine.

Para a Al Qaeda, disse ele, “é como abrir uma franquia da [pizzaria] Domino’s e enviar alguém para lá para fazer controle de qualidade”. Já o Estado Islâmico “levaria isso um passo além e nomearia um gerente saído da organização original”.

O Estado Islâmico aterrorizou países em todo o mundo com o seu chamado por ataques ditos de lobos solitários, em que um jihadista, sem receber ordens dos comandantes do grupo, gravava um vídeo jurando fidelidade ao líder do EI e cometia atrocidades. O grupo central então divulgava os ataques e declarava seu apoio.

Os dois grupos continuam a ser adversários ferrenhos, competindo por recrutas e financiamento. Já se combateram diretamente no Afeganistão, na Síria e em outros países.

O Afeganistão agora poderá tornar-se seu campo de batalha principal, na medida em que os Estados Unidos retiram suas tropas e o Talibã estende seu controle.

Em um acordo selado com a administração Trump no ano passado, o Talibã comprometeu-se a não deixar a Al Qaeda usar o território afegão para atacar os Estados Unidos. Mas até que ponto o Talibã vai honrar essa promessa, ou se ele sequer será capaz de fazê-lo, são perguntas que permanecem em aberto.

O Estado Islâmico não precisa se ater a tais restrições, fato que pode deixá-lo mais bem posicionado para explorar o caos que cerca o prazo final de 31 de agosto para a retirada das tropas americanas e a transição de um governo apoiado pelos EUA para um governo do Talibã. Para Hassan, “a troca da guarda de uma força de segurança para outra oferece uma oportunidade natural para o Estado Islâmico”.

Tradução de Clara Allain

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