Enquanto Biden dava garantias em público, inteligência avisava sobre colapso afegão

Relatórios de julho questionavam se governo de Ashraf Ghani conseguiria manter a capital Cabul

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mark Mazzetti Julian E. Barnes Adam Goldman
Washington | The New York Times

Avaliações sigilosas de agências de espionagem dos EUA pintaram durante o verão americano uma perspectiva cada vez mais sombria de uma possível tomada do Afeganistão pelo Taleban e advertiram sobre o rápido colapso dos militares locais, mesmo enquanto o presidente Joe Biden e seus assessores diziam em público que era improvável que isso acontecesse com tanta rapidez, segundo autoridades atuais e anteriores do governo americano.

Em julho, muitos relatórios de inteligência foram mais pessimistas, questionando se as forças de segurança afegãs apresentariam uma resistência séria e se o governo poderia manter a capital, Cabul.

Biden disse em 8 de julho que a queda do governo afegão era improvável e que não haveria evacuação caótica de americanos, como no fim da guerra do Vietnã.

O presidente dos EUA, Joe Biden, durante entrevista coletiva sobre a tomada taleban no Afeganistão
O presidente dos EUA, Joe Biden, durante entrevista coletiva sobre a tomada taleban no Afeganistão - Brendan Smialowski - 16.ago.21/AFP

O ritmo de advertências levanta questões sobre a razão de os membros do governo democrata e os planejadores militares no Afeganistão parecerem despreparados para lidar com o avanço final do Taleban sobre Cabul, incluindo o fracasso em garantir a segurança no aeroporto e em enviar mais milhares de soldados de volta ao país para proteger a retirada final dos EUA.

Um relatório em julho —enquanto dezenas de distritos afegãos caíam e combatentes talebans sitiavam cidades importantes— expôs os crescentes riscos para Cabul, notando que o governo afegão estava despreparado para um ataque do Taleban, segundo uma fonte inteirada das comunicações sigilosas.

Órgãos de inteligência previram que, se o grupo fundamentalista tomasse cidades, um colapso em cascata poderia ocorrer rapidamente e as forças de segurança afegãs corriam alto risco de se desintegrarem. Não está claro se outros relatos durante esse período apresentaram uma imagem mais otimista sobre a capacidade dos militares afegãos e do governo em Cabul de enfrentar o grupo insurgente.

lá fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

Uma análise histórica fornecida ao Congresso americano concluiu que o Taleban tinha aprendido lições de sua tomada do país nos anos 1990. Desta vez, dizia o relatório, o grupo militante primeiro garantiria os cruzamentos de fronteira, dominaria as capitais provinciais e ocuparia áreas no norte do país, antes de avançar para Cabul, previsão que se mostrou acurada.

Mas decisões-chave dos EUA foram tomadas muito antes de julho, quando o consenso entre os órgãos de inteligência era o de que o governo afegão poderia se sustentar durante até dois anos, o que deixaria tempo para uma saída ordenada. Em 27 de abril, quando o Departamento de Estado ordenou a partida de pessoal não essencial da embaixada, a avaliação geral da inteligência ainda era a de que uma tomada taleban demoraria 18 meses.

Uma autoridade graduada, que falou sob condição de anonimato, afirmou que até o fim de julho, enquanto a situação se tornava mais volátil, as agências de inteligência nunca apresentaram uma previsão clara de uma tomada iminente do Taleban. A autoridade disse que essas avaliações também não tiveram uma nota de "alta confiança", o nível mais alto de certeza das agências.

Até uma semana antes da queda de Cabul, a análise geral da inteligência era que uma tomada taleban ainda não era inevitável, segundo essa fonte. As autoridades também afirmaram que em julho Biden pressionava o governo afegão a fazer as concessões que, segundo relatórios de inteligência, eram necessárias para evitar o colapso do governo.

Porta-vozes da CIA e o diretor da inteligência nacional não quiseram discutir as avaliações dadas à Casa Branca. Mas autoridades de inteligência admitiram que as análises de suas agências foram sóbrias e que as avaliações tinham mudado nas últimas semanas.

Durante seu discurso na segunda-feira, Biden disse que seu governo havia se "planejado para qualquer contingência" no Afeganistão, mas que a situação "se desdobrou mais rapidamente do que prevíamos".

Diante de claras evidências do colapso das forças afegãs, autoridades americanas começaram a se acusar internamente, incluindo declarações da Casa Branca que sugeriam um erro da inteligência.

Essas acusações geralmente ocorrem depois de grandes falhas na segurança nacional, mas levará semanas ou meses para que surja uma imagem mais completa da tomada de decisões no governo Biden que levou ao caos em Cabul nos últimos dias.

Órgãos de inteligência há muito previam uma vitória definitiva do Taleban, mesmo antes que o ex-presidente Donald Trump e o atual, Biden, decidissem retirar as forças. Essas estimativas forneceram uma série de cronogramas. Enquanto elas levantavam indagações sobre a vontade das forças de segurança afegãs de lutar sem os americanos ao seu lado, não previam um colapso em questão de semanas.

Mas nos últimos meses as avaliações se tornaram cada vez mais pessimistas, conforme o Taleban ampliava suas conquistas. Os relatórios questionavam em termos duros a vontade de lutar das forças afegãs e a capacidade de o governo manter o poder em Cabul. A cada relato de deserções em massa, disse uma ex-autoridade, o governo afegão parecia menos estável.

Outro relatório da CIA em julho comentou que as forças de segurança e o governo central tinham perdido o controle das estradas que servem a Cabul e calculavam que a viabilidade do governo estava seriamente ameaçada.

"O negócio da inteligência não é dizer: 'Sabe, em 15 de agosto o governo afegão vai cair'", diz Timothy Bergreen, ex-diretor de pessoal da Comissão de Inteligência da Câmara dos Deputados. "Mas o que todo mundo sabia é que sem o endurecimento das forças internacionais, e especificamente das nossas forças, os afegãos seriam incapazes de se defender ou governar sozinhos."

Duas ex-autoridades do governo Trump que revisaram algumas avaliações da CIA sobre o Afeganistão disseram que as agências de inteligência apresentaram advertências sobre a força do governo e das forças de segurança afegãos. Mas a agência resistiu a dar um cronograma exato, e a avaliação poderia ser interpretada de diversas maneiras, incluindo a conclusão de que o Afeganistão poderia cair rapidamente ou talvez com o passar do tempo.

A CIA durante anos foi pessimista sobre o treinamento das forças afegãs. Mas a Agência de Inteligência da Defesa e outros órgãos de inteligência no Pentágono apresentaram avaliações mais otimistas sobre o preparo dos afegãos, segundo autoridades atuais e anteriores.

Avaliações de militares e da inteligência prevendo que o governo de Cabul poderia se manter por mais um ano, pelo menos, antes de uma tomada taleban foram construídas sobre uma premissa que se mostrou falha: a de que o Exército afegão enfrentaria uma luta.

Duas décadas atrás, essa dinâmica se desdobrou ao contrário. Quando as milícias afegãs apoiadas pelos EUA começaram a capturar território do Taleban no final de 2001, os combatentes talebans recuaram com relativa rapidez, e tanto Cabul como Kandahar caíram antes do fim do ano.

Alguns talebans se renderam, alguns mudaram de lado, e um número muito maior simplesmente se misturou à população para planejar o que se tornaria uma insurgência de 20 anos.

Afinal, dizem analistas, o Taleban venceu com a estratégia que muitas vezes demonstrou êxito durante as muitas décadas de guerra no Afeganistão —eles duraram mais que seu adversário.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.