Moradores de Cabul sofrem com preços em alta, falta de gasolina e dinheiro escasso sob Talibã

Afegãos da capital são os que sentem mais os efeitos da queda do governo, mas há quem comemore

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Norimitsu Onishi Sharif Hassan
The New York Times

Os americanos praticamente desapareceram, o governo afegão desabou e o Talibã agora governa as ruas de Cabul. Após 20 anos de governo apoiado pelos EUA, milhões de residentes da capital afegã se viram obrigados, da noite para o dia, a se orientar sozinhos durante uma transição incerta.

Na terça-feira (24), nove dias depois de o Talibã ter voltado ao poder, os serviços públicos ainda estavam em grande parte indisponíveis. Moradores de Cabul lutam para viver seu cotidiano em uma economia que, depois de ter sido escorada na geração passada pela assistência americana, agora, de repente, encontra-se em queda livre.

Vendedor de pão nas ruas de Cabul, capital do Afeganistão, país cujo controle foi retomado pelo Talibã
Vendedor de pão nas ruas de Cabul, capital do Afeganistão, país cujo controle foi retomado pelo Talibã - Victor J. Blue/The New York Times

Os bancos estão fechados, e o dinheiro vivo, escasseando, enquanto os preços dos alimentos sobem. Está ficando mais difícil encontrar gasolina.

Com as forças americanas agarrando-se ao aeroporto internacional para conduzir uma evacuação feita às pressas, o Talibã continua a reforçar seu domínio nos bairros e nas ruas de Cabul. Uma calma relativa reina na capital, em contraste com o caos e o vale-tudo vistos no aeroporto. Enquanto isso, muitos moradores da capital se escondem em suas casas ou se aventuram para fora apenas cautelosamente para ver como a vida pode ser sob o controle de seus novos governantes.

Os relatos ouvidos variam conforme os bairros e as pessoas, oferecendo uma fotografia instantânea em evolução e às vezes contraditória da vida em uma cidade que mais uma vez está sendo governada pelo Talibã —grupo que agora promete moderação e inclusão, mas cujo histórico é de adesão a uma ordem social islâmica rígida e intransigente.

Mesmo os habitantes de Cabul que disseram temer o Talibã destacaram a relativa ordem e calma nas ruas –um contraste marcante com os anos de crime e violência em ascensão que tinham se tornado um aspecto do cotidiano da cidade.

Para alguns, contudo, o silêncio é opressor.

Militante do Talibã estende bandeira do grupo extremista em Cabul, capital do Afeganistão
Militante do Talibã estende bandeira do grupo extremista em Cabul, capital do Afeganistão - Victor J. Blue/The New York Times

Um morador de Cabul chamado Mohib disse que na parte da cidade em que vive as ruas estão desertas. As pessoas estão escondidas em suas casas, “assustadas e aterrorizadas”.

“As pessoas acham que o Talibã pode chegar a qualquer momento e lhes tirar tudo”, disse Mohib, que, como a dúzia de outros habitantes entrevistados para esta reportagem, está sendo identificado apenas por seu primeiro nome, devido a preocupações com sua segurança.

Nas áreas centrais da cidade, com grande presença de talibãs, veem-se poucas mulheres, e aquelas que se aventuram a sair usam a burca, a vestimenta que cobre o corpo inteiro e também o rosto, disse o funcionário público Sayed.

Em outros bairros de Cabul, onde a presença dos talibãs é menor, as mulheres estão saindo “de roupa normal, como faziam antes do Talibã”, comentou Shabaka, acrescentando que ela própria havia saído à rua e topado com talibãs sem sofrer qualquer incidente, apesar de estar usando suas “roupas habituais”.

Shabaka disse que há um clima de medo latente em seu bairro, mas que a situação está calma.

Outros tiveram coisas positivas a dizer sobre a chegada dos talibãs, em contraste com seus predecessores afegãos apoiados pelos EUA, desprezados por muitos em razão da corrupção.

No bairro de Company, na periferia oeste de Cabul, o comércio e o trânsito nas ruas haviam quase voltado ao normal, apesar da dificuldade crescente de encontrar gasolina.

Caminhoneiros e motoristas de ônibus disseram que as rodovias afegãs estão mais seguras, agora que o Talibã consolidou seu controle sobre o país. Os motoristas veem com bons olhos a remoção de dezenas de postos de controle onde antes forças de segurança e milícias extorquiam propinas da população. Os postos de controle deram lugar a um único pedágio que é pago ao Talibã.

“Estamos contentes com o Emirado Islâmico”, afirmou Ruhullah, 34, morador da província de Wardak que conduz um ônibus de passageiros pela rodovia principal entre Herat e Cabul. “Com a chegada do Talibã, nossos problemas foram resolvidos. Não há mais assédio policial ou extorsão de propinas.”

No vácuo criado pela queda do governo afegão, líderes do Talibã disseram buscar uma aproximação com a Rússia e com o ex-presidente afegão Hamid Karzai, enquanto discutem a forma a ser assumida por um novo governo.

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Em Cabul, porém, há poucos sinais até agora da presença de uma nova autoridade nas repartições públicas.

Khalid disse que em uma seção governamental que fornece documentos de identidade eletrônicos não havia um único funcionário público presente, nem mesmo “um talibã sequer para nos atender”.

Segundo ele, os funcionários públicos não estão se apresentando para trabalhar porque temem represálias do Talibã.

Para outros habitantes de Cabul, há mudanças de pessoal ocorrendo em outras repartições públicas.

“Quem trabalhava para o governo perdeu seu emprego, e o Talibã está nomeando novos funcionários”, comentou o agente de viagens Raziq.

A tomada rápida do poder solapou uma economia já frágil que era em grande medida dependente de assistência externa. Como os Estados Unidos e o Fundo Monetário Internacional deixaram de mandar dinheiro para o Afeganistão, o Talibã se encontra isolado e enfrenta uma crise financeira.

Moradores de Cabul disseram que, além dos bancos, também estão fechados os “hawalas”, estabelecimentos informais que realizam transferências de dinheiro. Enquanto a moeda local, o afegani, vai escasseando, as pessoas guardam os dólares americanos que possuem, que também estão mais escassos.

As pessoas estão ficando sem dinheiro vivo porque não têm acesso às suas contas bancárias, afirmou o jornalista Rahmatullah. “E não podem contrair empréstimos porque ninguém tem dinheiro.”

A inflação está complicando ainda mais a vida das pessoas. Segundo Rahmatullah, o galão de cinco litros de óleo de cozinha antes custava 500 afeganis, mas agora é vendido por 1.200 afeganis.

Muitos moradores da cidade confirmaram que os alimentos estão mais caros. Mas algumas verduras e frutas produzidas localmente estão custando menos que antes, porque as fronteiras estão fechadas e os comerciantes não têm como exportá-las, disse Hassan, funcionário de uma ONG. Segundo ele, o preço de sete quilos de maçãs caiu de 500 afeganis para 100.

Com o dinheiro ficando mais escasso, o desemprego está aumentando visivelmente na cidade.

“Centenas de diaristas e trabalhadores na construção percorrem as ruas todos os dias e não há empregador para lhes dar trabalho”, comentou o funcionário público Sayed. “Cabul enfrenta uma crise profunda de pobreza.”

Moradores disseram que o encarecimento dos combustíveis afeta até mesmo o grupo triunfante. Alguns dos talibãs já não estão andando nas picapes Ford Ranger que tomaram da polícia afegã. Ou, quando estão, até 16 talibãs são vistos andando em uma única caminhonete, disse Raziq, o agente de viagens.

Durante os 20 anos em que os Estados Unidos ocuparam o país, os moradores de Cabul foram os afegãos mais expostos a uma visão alternativa da sociedade, formando um contraponto com a visão social do Talibã, cujas raízes estão em áreas rurais e nos costumes profundamente conservadores dos pashtuns étnicos que dominam o movimento.

Assim, os afegãos da capital, especialmente aqueles que não têm recordações da vida sob o domínio do Talibã, parecem ser os que estão mais angustiados com a nova ordem.

“As pessoas estão preocupadas com sua vida”, disse Saifullah, que opera um estabelecimento informal de transferências financeiras. “Não estão realmente preocupadas em reabrir seus negócios. As escolas e os centros educacionais estão fechados, os estudantes jovens estão tentando encontrar uma maneira de fugir do país. Eles não estão preocupados em voltar às aulas.”

Afegãos jovens estão deixando Cabul todos os dias para tentar atravessar a fronteira e entrar em países vizinhos, disseram moradores da capital. Os ônibus que vão às regiões de fronteira viajam repletos de jovens que ficam aguardando em hotéis da área por coiotes que os conduzam na travessia, disse Mohammed, ex-funcionário governamental.

“Os ônibus que partem de Cabul para as províncias de fronteira estão saindo lotados, mas retornam vazios”, afirmou ele, comentando ainda que uma passagem de ônibus até a fronteira está custando mais que o dobro da passagem de volta à capital.

Raziq, o agente de viagens, contou que, depois de anunciar no Facebook no dia anterior que podia processar vistos para o Uzbequistão, recebeu 557 mensagens de texto e mais de 300 telefonemas.

Para pessoas que trabalharam com americanos e outros ocidentais, a retirada repentina e o caos que se seguiu constituem uma traição profunda da vida que elas acreditavam ser possível.

Senin, estudante universitária de 22 anos, disse que combatentes do Talibã a impediram de ir à faculdade nesta semana. Seus dois irmãos, que trabalharam com as forças americanas, foram evacuados.

Mas ela foi deixada para trás com seus pais e uma irmã –e líderes do Talibã, cientes dos vínculos da família com os americanos, ameaçaram sua família e a espancaram.

Senin disse que a situação se tornou insuportável. “Todos meus sonhos foram dispersos.”

Tradução de Clara Allain

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