Renúncia ao governo de Nova York mancha legado de Cuomo

Democrata não igualará mais mandato de 12 anos de seu pai, Mario Cuomo, já falecido

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Shane Goldmacher
The New York Times

Andrew Cuomo sempre deu importância ao seu lugar na história.

No início de seu mandato como governador do estado de Nova York, ele convidou Robert Caro, um biógrafo e historiador do poder, vencedor do prêmio Pulitzer, para uma audiência privada em Albany, a capital. A ideia era que Caro compartilhasse lições do legado de Robert Moses, o "mestre de obras" que atropelou impiedosamente seus rivais para reconstruir Nova York no século 20.

Mas, diante de um prato de cookies no Capitólio, logo ficou claro que era Cuomo quem iria falar. Durante quase duas horas, ele discorreu com admiração sobre Moses, delineou sua filosofia de governo e entreteve Caro com suas ambições de construir muito —reformando pontes, aeroportos e mais. Então o governador declarou educadamente que a reunião tinha terminado.

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, em vídeo em que anuncia sua renúncia ao cargo - Reprodução/Reuters

"Foi uma coisa arrogante e irritante", lembrou Caro, hoje com 85 anos, em entrevista. "Pensar que eu tinha dado um dia da minha vida para ele me dar aula."

Impor sua vontade a outros para servir à sua agenda e às suas ambições é um marco na carreira de Cuomo, desde seu papel como promotor público para seu pai, o governador Mario Cuomo, que exerceu três mandatos, até seu reinado de mais de uma década como incansável executivo-chefe de Nova York.

Ele pisoteou legisladores, chicoteou a própria equipe e intimidou autoridades —de ambos os partidos, mas com frequência colegas democratas— ao longo de uma constante ascensão, na qual acumulou poder e inimigos quase na mesma medida. Seu pulso firme muitas vezes funcionou.

Cuomo implementou alguns dos projetos de infraestrutura que havia previsto em sua conversa com Caro, incluindo a substituição da ponte Tappan Zee e a reforma do aeroporto La Guardia.

Durante mais de 40 anos, o nome Cuomo foi quase sinônimo de governo democrata em Nova York, com um membro da família disputando o cargo máximo estadual em todas as eleições —menos uma, em 1974.

Agora, ele representa outra coisa. A primeira acusação de assédio sexual contra Andrew Cuomo foi feita em dezembro. Depois, veio outra, em fevereiro, e então mais uma, com pedidos de investigação e renúncia na sequência e, afinal, uma investigação independente do secretário estadual de Justiça.

O documento condenatório final, em 3 de agosto, corroborou ou deu crédito aos relatos de 11 mulheres que denunciaram vários graus de assédio e desvio de conduta de Cuomo, incluindo uma acusação de bolinação. Diante da quase certeza de impeachment, Cuomo anunciou sua renúncia na terça-feira (10), embora continuasse negando as alegações de assédio e qualquer contato físico inadequado.

"É uma mancha que sempre estará lá", disse Robert Abrams, que foi secretário de Justiça de Nova York quando o pai de Cuomo era governador. "As acusações e sua demissão certamente serão inscritas nas linhas iniciais de um futuro obituário de Andrew Cuomo."

Foi uma queda tão rápida que os observadores podem ser perdoados por alternar entre chamá-la de tragédia grega ou shakespeariana. Uma elegante loja de suéteres que um ano atrás anunciava artigos com os dizeres "Cuomosexual" e "Cuomo para presidente" hoje oferece gratuitamente bordados para remover a frase e substituí-la por "Acredite nos sobreviventes" ou qualquer outra.

Cuomo não mais igualará o mandato de 12 anos de seu pai, já falecido, cuja reputação como orador e ícone do liberalismo obscureceu para sempre a carreira do filho. Este usou um par de sapatos do pai em sua terceira posse, e nos últimos dias sua aspiração a um quarto governo —para ser o Cuomo de mandato mais longo— evaporou. "Eu amo Nova York", disse Cuomo em seu discurso de renúncia na terça. "Tudo o que fiz foi motivado por esse amor."

Cuomo e seus aliados afirmaram que seus métodos visavam domar um aparelho estadual notoriamente indisciplinado. Com maior destaque, ele defendeu o casamento homossexual no Legislativo dividido em seus primeiros seis meses de governo, pressionando democratas e republicanos recalcitrantes a fazer de Nova York o maior estado a permiti-lo.

Depois vieram um pacote de segurança no uso de armas e orçamentos equilibrados, um salário mínimo escalonado de US$ 15 por hora e outros investimentos cruciais em infraestrutura, incluindo a nova estação ferroviária Moynihan e o metrô da Segunda Avenida.

"Os historiadores terão de ser honestos sobre as realizações que ele conseguiu", disse Harold Holzer, que trabalhou com o pai de Cuomo e levou Caro à reunião em Albany. Hoje diretor do Instituto de Políticas Públicas Roosevelt House, no Hunter College, Holzer resumiu o legado de Andrew Cuomo como o de "um ser humano com falhas e um grande governador".

Mas onde exatamente terminava o amor de Cuomo pelo estado e começava sua busca por poder e controle sempre foi uma linha imprecisa. Ex-assessores debateram essa questão recentemente fazendo sessões de terapia, trocando mensagens de texto e tomando drinques.

"Tóxico, hostil, abusivo" e "medo, intimidação, prepotência, vingança" foi como Joon Kim, um dos advogados que lideraram o inquérito, citou testemunhas que descreveram a cultura de escritório de Cuomo.

Entre os mais próximos confidentes de Cuomo, houve uma recente reavaliação de suas táticas, se eram realmente necessárias. "Teríamos todos nós criado uma pátina ao redor do governador que lhe deu mais latitude do que ele merecia?", disse Christine Quinn, ex-presidente do conselho de vereadores da cidade de Nova York e ex-aliada de Cuomo.

Cuomo foi caracteristicamente obstinado sobre seu estilo. Em sua primeira entrevista após a renúncia, à New York Magazine, ele disse: "Você não pode convencer um prego a entrar na tábua. Ele tem de ser batido com um martelo". Mas essa mão pesada teve um efeito colateral crucial: o governador ficou fatalmente isolado em seu momento de necessidade política.

Ao renunciar, Cuomo disse que "não percebeu a medida em que a linha foi retraçada" sobre o assédio sexual. Ele esqueceu que, como governador, tinha feito parte do retraçado ao assinar leis que impõem mais proteções contra o assédio sexual. Um dia depois da assinatura da lei, ele perguntou a uma patrulheira estadual por que ela não usava vestido, segundo o relatório.

Hoje o governador de 63 anos está perto do desemprego e ainda enfrenta investigações criminais sobre sua conduta com as mulheres. Autoridades federais também estiveram analisando a atuação de seu governo nos casos de mortes em lares de idosos durante a pandemia, e o secretário de Justiça examina o uso de recursos do estado para o livro de memórias de Cuomo no ano passado.

"Tenho certeza de que ele sente que tem grandes negócios a terminar", disse Charlie King, companheiro de chapa de Cuomo para vice-governador em 2002 e uma das poucas pessoas que o aconselharam até o fim. "E isso, mais que qualquer coisa, ficará com ele ao fechar os portões de Eagle Street e se despedir da mansão do governador."

De olho nos livros de história

Desde o início, Andrew Mark Cuomo teve um jeito especial para imagens políticas vívidas e um gosto por exalar sua dominação. Ele deu acendendo cigarros em seu escritório nos anos 1980 e deu baforadas em charutos em um parque em Manhattan no início dos anos 2000. Nos bastidores, era conhecido por modular as reportagens com declarações em "off".

Sua primeira disputa eleitoral, em 2002, foi um fracasso, ao abandonar a primária mesmo antes de ter a chance de disputar com o governador republicano George Pataki, que tinha vencido seu pai em 1994.

Mas ele rapidamente retornou com uma narrativa de contrição que o levou a se tornar secretário de Justiça quatro anos depois. Implosões sucessivas dos governadores Eliot Spitzer e David Paterson em escândalos o colocaram num caminho rápido para a mansão do governador em 2010.

Mesmo antes de vencer, Cuomo pensava nos livros de história —enviou exemplares de uma biografia do ex-governador Hugh Carey a líderes trabalhistas em outubro daquele ano. Ele disse que também tinha aprendido com os erros do determinado Spitzer.

"Lição número 1 de Spitzer", disse Cuomo então. "Não aliene o Legislativo no primeiro dia."

Cuomo demorou um pouco mais, mas neste ano ele tinha poucos amigos em Albany. Sua abordagem à política de "o vencedor leva tudo" —com o Executivo sempre vencendo— tornou-se cansativa para os legisladores que viam suas ideias repetidamente pisoteadas ou encampadas (às vezes ambos).

Um centrista, especialmente em política fiscal, Cuomo triangulou entre os partidos para conter os elementos democratas mais agressivos. Durante anos, apoiou tacitamente uma divisão entre democratas em Albany, na qual uma facção de senadores democratas formou um acordo de divisão de poder com os republicanos. Cuomo havia muito afirmava que era impotente para reunir o partido —até que ajudou a negociar um acordo para fazer exatamente isso em 2018.

Cuomo tinha confidenciado no início daquele ano a Alison Hirsh, então assessora política de um poderoso sindicato, que não queria colocar os democratas totalmente no comando do Senado antes do orçamento daquele ano. Hirsh lembrou que Cuomo lhe disse que era porque a senadora Liz Krueger, uma democrata liberal de Manhattan, pressionaria para aumentar os impostos e que a senadora Andrea Stewart-Cousins, a líder democrata, "daria café da manhã grátis para todas as pessoas negras". Stewart-Cousins é negra.

Duas pessoas confirmaram que Hirsh lhes havia falado sobre os comentários do governador à época; uma lembrou a frase textualmente. Richard Azzopardi, um porta-voz de Cuomo, negou que ele tenha dito isso.

Cuomo se tornou mais ousado com o tempo. Ele não quis bailes de gala para a posse em 2011. Em 2019, a terceira posse foi um evento resplandecente, transportando a elite política de Nova York de barco além da Estátua da Liberdade para ouvi-lo discursar do Grande Saguão da Ilha Ellis, enfeitado com bandeiras.

Alguns assessores dizem acreditar que a pandemia reforçou a sensação de invencibilidade. Os comunicados diários, transmitidos ao vivo pela TV, fizeram dele um antídoto democrata a Donald Trump. Pessoas próximas do governador disseram que Cuomo respirava a cobertura, a audiência, a adulação.

Ele assinou um acordo de livros de US$ 5,1 milhões antes que a pandemia terminasse. Havia conversado com seu irmão, Chris Cuomo, âncora da CNN, em horário nobre. E também, de acordo com o relatório do investigador, perguntou a uma jovem que trabalhava com ele se ela sairia com homens mais velhos. Indagou se ela era monógama. E disse que ficaria bem com uma mulher de 22 anos.

Em um registro no diário em março incluído no relatório do secretário de Justiça, a conselheira de ética de Cuomo na época, Julia Pinover Kupiec, escreveu que seu chefe "entende a dinâmica do poder sutil e dos jogos de poder melhor que a maioria das pessoas no planeta".

"Ou ele sabia exatamente o que estava fazendo (provavelmente), ou é tão narcisista que pensou que todas as mulheres queriam esse tipo de pergunta (desculpa maluca só de escrever)", escreveu ela.

Disputa eterna com 'papa'

Krueger lembrou um momento no início do governo de Cuomo quando ela estava em um grupo de legisladores na mansão. Ela se viu falando com Cuomo em particular enquanto ele contava os dias sombrios de sua disputa para governador em 2002, quando seus aliados o abandonaram.

"Eu percebi que minha mãe era a única pessoa no mundo que me amava", disse Cuomo a ela, segundo Krueger. A frase se destacou porque Cuomo estava de pé sob um retrato de seu pai, que ainda estava vivo.

Embora Cuomo tenha se irritado há muito com a menção de qualquer psicodrama relacionado ao pai, Mario Cuomo foi uma presença constante na administração de seu filho. Cuomo repetidamente se refere ao pai e em 2017 rebatizou a ponte Tappan Zee com o nome dele.

Durante a campanha de 2018, fez pesquisas com eleitores para saber se eles achavam que ele poderia ser um dos maiores governadores —título que confere publicamente ao pai. "Estava sempre na vanguarda", disse Peter Kauffmann, um ex-assessor de Andrew Cuomo.

Alan Chartock, que dirige uma estação de rádio em Albany, entrevistou Mario Cuomo durante seu governo, assim como Andrew nos últimos anos. Ele vê "uma eterna disputa com o 'papa'".

Quando Chartock disse isso a Andrew no ar, no ano passado, Cuomo respondeu: "Ah, eu não disputo com ele. Eu sei que você diz isso e sei que pensa isso e conheço o blá-blá-blá freudiano".

Momentos antes, na mesma entrevista, quando Chartock cumprimentou Cuomo por sua recente capa na revista Rolling Stone, o governador respondeu: "Eu vejo o rosto do meu pai quando olho para aquela foto".

Cuomo tem apenas mais alguns dias na mansão a que teve acesso durante mais de duas décadas em sua vida adulta. Na sexta-feira (13), a Assembleia estadual anunciou que abandonará a investigação de impeachment, mantendo aberta a possibilidade de que Cuomo possa se candidatar futuramente. Ele ainda tem US$ 18 milhões em caixa de campanha —mais que qualquer outro político do estado de Nova York.

"Andrew voltará de alguma forma ao serviço público", disse Meyer Sandy Frucher, um antigo amigo da família Cuomo e ex-assessor de Mario Cuomo. "Isso é o que ele é, e foi criado para ser."

Alguns anos depois de seu encontro com Caro, Cuomo estava pronto para inaugurar uma das grandes realizações de infraestrutura que tinha proposto como parte de seu legado: a muito adiada extensão do metrô da Segunda Avenida. Caro disse que o gabinete do governador o convidou para a cerimônia de abertura. Caro recusou.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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