Cada vez mais, atores e atrizes do Brasil escolhem Lisboa para viver

Eles partem em busca de melhor qualidade de vida e insatisfeitos com o atual enredo político do país

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Álvaro Filho
Mensagem de Lisboa

Apesar da dimensão do mercado brasileiro de televisão, cinema e teatro —e da reconhecida fama de “maior produtor de novelas do mundo”— nos últimos anos uma onda de atores e atrizes brasileiras decidiu trocar o Brasil por Portugal. Um contingente composto por rostos (e sobrenomes) conhecidos e outros nem tão conhecidos assim, que aposta no talento nato e na habitual disposição dos imigrantes para conquistar as ribaltas e os ecrãs portugueses.

A lista é longa e inclui nomes conhecidos do público português, como Pedro Cardoso, Luana Piovani, Leonardo Vieira, Marcelo Antony, Tássia Camargo e ainda o recém-chegado casal Roberto Bomtempo e Miriam Freeland, que desde dezembro de 2020 entrou no casting dos novos residentes em Portugal com uma longa carreira na televisão brasileira.

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A atriz Nina Morena, na varanda do apartamento em Arroios - Rita Ansone/Mensagem de Lisboa

Ao lado desses, há pelo menos uma dezena de jovens atores, com a carreira ainda em construção no Brasil, mas que, desejosos por novos desafios e melhor qualidade de vida, e também por insatisfação com o atual enredo político no país, fizeram as malas e partiram em busca de um lugar ao sol —ou sob os holofotes— em outro hemisfério.

Crise política, econômica e existencial

Embora a presença de artistas brasileiros nas ruas de Lisboa não seja propriamente uma novidade, a recente diáspora parece acompanhar o crescimento da imigração brasileira para Portugal, acentuada no final da década passada, quando o número saltou de 50 mil para 150 mil. Um fluxo que não deu trégua nem durante a pandemia e, mesmo, com o encerramento das fronteiras entres os dois países, registrou a entrada de mais 42 mil brasileiros em 2020.

Essa é a impressão do ator Miguel Thiré, 38, que está há quatro anos em Lisboa. “Há mais atores e mais atrizes do Brasil em Portugal pois há mais brasileiros em Portugal. A diferença é que nós, artistas, fazemos mais alarido que os médicos e os engenheiros”, arrisca o irmão dos também atores Luísa e Carlos Thiré, filho de Cecil Thiré e neto de Tônia Carrero, um clã artístico que frequenta as novelas (e radionovelas) brasileiras desde os anos 1940.

Do apartamento nos Arroios, um dos bairros –ou freguesia– no centro de Lisboa com maior presença estrangeira, Miguel espera o fim do novo confinamento para retomar a participação nas duas produções interrompidas pela pandemia, "Alice do Outro Lado da História", da qual é encenador, e como ator em "A Peça que Dá para Torto". Em Portugal, também atuou na novela "A Impostora". Miguel não perde o otimismo e, para além das produções que está envolvido, já tem planos para um novo projeto ainda em 2021.

Para ele, os artistas brasileiros intensificaram a migração após o atual governo declarar guerra à classe, desmantelando as redes de apoio ao setor. “Além da crise econômica e política, o Brasil vive uma crise de identidade”, resume. Um problema existencial que levou os artistas à procura de outros ares. “Primeiro, veio o Pedro Cardoso, depois a Luana Piovani, o Marcelo Antony e o Leonardo Vieira. Nomes com mercado no Brasil, mas que estavam sufocados com o ambiente pesado. E não parou mais”.

Não mesmo.

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Miguel Thiré tem conseguido aliar o trabalho como ator e diretor de teatro em Portugal - Rita Ansone/Mensagem de Lisboa

Também moradora de Arroios, a atriz Nina Morena acompanhou o bloco dos descontentes com os rumos do país e partiu em 2019. “Apesar da diferença no tamanho do mercado e das oportunidades, o que se reflete em menos trabalho e dinheiro, a qualidade de vida compensa”, diz Nina, oriunda de uma família com serviços prestados à cultura brasileira: é filha da atriz Marília Pera e do jornalista e escritor Nelson Motta.

O primeiro ano de Nina em Lisboa foi de trabalho intenso, na peça "Amor e Redes Sociais", que ficou em cartaz até o início de 2020. “Nem no Brasil havia conseguido passar tanto tempo no palco. Foi um sonho”, fala, abrindo um amplo sorriso, enquanto contempla as ruas do multicultural bairro de Arroios da varanda do apartamento onde vive, na companhia da irmã.

Quando a pandemia, porém, encerrou os palcos, a atriz de 40 anos, formada no Lee Strasberg Theatre and Film Institute, em Nova York, aproveitou a pausa forçada para aperfeiçoar a sua faceta como roteirista, além ampliar o networking entre os profissionais locais. “É desafiador abrir portas em um mercado novo, ainda mais em tempos de quarentena, mas eu gosto de enfrentar novos desafios.”

Apesar das dificuldades impostas pela paralisação no campo das artes devido à pandemia, Nina demonstra otimismo e confiança na escolha pela mudança de vida e tem incluído na lista de “novos desafios” a procura por um apartamento para comprar, o que comprova um desejo de fincar raízes no país.

Presença nas telas portuguesas

O último curso de Nina foi com o autor de novelas português Rui Vilhena, admirador da mão de obra brasileira. Sob a sua batuta, Na Corda Bamba, exibida no canal TVI, teve um mini núcleo brasileiro, com Adriano Toloza, Lucélia Santos, Edwin Luisi, Cristina Lago e Eduardo Gaspar. Mas também já trabalharam com ele em produções portuguesas Sílvia Pfeifer, Zezé Mota, Gracindo Júnior, Tássia Camargo e Bia Seidl, entre outros.

“Há uma migração maior, não só de atores e atrizes, mas de técnicos da indústria do audiovisual, insatisfeitos com a atual situação no Brasil”, atesta o autor, para quem os artistas do Brasil se beneficiam da histórica presença brasileira nas telas portuguesas para se inserirem com menos dificuldades no mercado local.

Uma cultura portuguesa de consumo das produções brasileiras que também ajudou os atores em Portugal a aprenderem o sotaque brasileiro, uma vantagem na hora de se conseguir papeis no outro lado do Atlântico. “Muitos, quando atuam falam perfeitamente como um brasileiro”, reconhece Vilhena, citando a atriz Maria João Bastos, que desempenhou papéis em algumas novelas no Brasil e até na série sobre a Operação Lava Jato. A recíproca, porém, nem sempre é verdadeira. “Podem até me provar o contrário, mas ainda não me apareceu um ator brasileiro que tenha me convencido a falar como um português.”

A falta de um sotaque lusitano, entretanto, não foi um problema para Miguel Thiré. Em "A Peça que dá para Torto", ele divide o palco com profissionais portugueses, sem fazer um papel destinado especialmente a um brasileiro. Com Nina Morena também foi assim. Sua personagem em "Amor e Redes Sociais" não era uma brasileira, mas uma “mulher como outra qualquer”.

Brasileiros naturalmente assimilados

Ator e preparador de elenco, o brasileiro Pedro Ramoa, 29, concorda que o mercado português, em geral, é receptivo aos brasileiros. Quando trabalhava na Globo, Pedro costumava recrutar portugueses para as telenovelas e testemunhou a ginástica para se encaixar um português na trama. “Era preciso elaborar um contexto para justificar a presença dele. Aqui, não, o brasileiro é naturalmente assimilado, sem maiores explicações, na história”, diz o ator, que atuou em Valor da Vida e Alma e Coração.

Pedro atenta, porém, para a ideia equivocada de que Lisboa é uma espécie de Portuguese Dream para os brasileiros. “A decisão de vir não deve obedecer apenas a questões profissionais, mas o desejo de se mudar de estilo de vida. As portas nem sempre se abrem tão fáceis ou o que se ganha é o suficiente. Às vezes, é preciso trabalhar em outra coisa até as oportunidades surgirem ou para completar o orçamento”, ensina o ator, que, apesar das participações televisivas, chegou a passar meses sem trabalho na área.

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Pedro Ramoa diz que Portugal é recetivo ao artista brasileiro, mas alerta para os riscos do “sonho português - Reprodução/Mensagem de Lisboa

Veterano na diáspora brasileira, o ator Eduardo Gaspar, 54, está há 28 anos em Portugal. Antes de estrear três novelas seguidas por lá –"Ouro Verde", "Valor da Vida" e "Na Corda Bamba"– fez também teatro e manteve em cartaz por 15 anos o monólogo "Ela Sou Eu". Mesmo assim, viveu dias de escassez de propostas e chegou a se arriscar por trás de um balcão de um café lisboeta. “Durou dois dias. Não suportei a ideia de estar ali, em pé, a ver a minha vida passar”, conta o ator.

Apesar das quase três décadas em Lisboa, Eduardo diz não conseguir falar como um “português da gema”. Isso não evitou que o seu personagem em "Ouro Verde" fosse dublado para o português do Brasil quando a novela foi transmitida em sua terra natal. “Foi curioso me ouvir com a voz de outra pessoa, com um forte sotaque paulista”, confessa o ator, dono de um inconfundível sotaque carioca.

Em outra produção, Eduardo compôs o núcleo da história que se passava no Líbano, embora nenhum dos atores tenha pisado em solo libanês. “As cenas foram gravadas numa cidadezinha perto do santuário de Fátima”, diverte-se, achando graça de o quartel-general muçulmano da trama situar-se no epicentro católico de Portugal.

Coisas do universo televisivo. Estranho, é verdade, mas nada tão surpreendente assim para quem já teve de ser dublado do português do Brasil para o português… brasileiro.

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