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América Latina vive crise de renovação política, diz socióloga que mede democracia na região

Pesquisa mais recente da Latinobarómetro mostra terreno fértil para líderes populistas e autoritários

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Buenos Aires

Argentina, Bolívia, Brasil e Peru, para ficar em quatro exemplos, foram alguns dos países latino-americanos abalados recentemente por crises envolvendo o Poder Executivo. Por trás delas, algo em comum, na visão da socióloga chilena Marta Lagos, fundadora da Latinobarómetro: a falta de estímulo à renovação de sua elite política.

O instituto mede, por meio de pesquisas de opinião, a saúde da democracia na região desde 1995. As cifras deste ano, divulgadas na última quinta-feira (7), mostram que o apoio popular a esse sistema está em um nível baixo, de 49%, ainda que estável em relação a anos anteriores.

Marta Lagos, diretora do Latinobarómetro
Marta Lagos, diretora do Latinobarómetro - Divulgação

O que preocupa é o crescente número de pessoas que dizem não se importar com líderes não democráticos (hoje em 27%), desde que eles resolvam problemas considerados urgentes, como o acesso ao emprego, à saúde e à educação. "Essa situação forma um caldo de cultura propício à chegada de governantes populistas e autoritários, inclusive por meio das urnas", diz Lagos à Folha.

A pesquisa mostra o Brasil, assim como os três países que formam o Triângulo Norte, na América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador), nessa zona de vulnerabilidade. "Os alertas estão dados."

O apoio à democracia não caiu muito nas últimas medições da Latinobarómetro, mas vem aumentando o número de pessoas indiferentes a que sistema político se adota passou de 16% em 2010 a 27% agora. Por que isso vem ocorrendo? Os latino-americanos vêm querendo cada vez mais governantes que resolvam seus problemas, esse é um clamor muito sério e urgente. Estamos em tempos diferentes, em que as pessoas podem ver com seu smartphone como é a realidade nos países desenvolvidos e estão pedindo melhor qualidade de saúde, educação, por mais direitos. A pandemia exacerbou esse sentimento.

Por isso temos um número estável de gente que apoia a democracia, mas no geral aumenta o daqueles que não se importam se estão numa democracia ou não, desde que seus problemas sejam resolvidos de uma vez. Esse é o caldo de cultura em que podem crescer os populismos.

Mas a sra. faz uma distinção entre essa possibilidade de escalada autoritária e o surgimento de novos golpes ou regimes militares. Sim, porque os golpes não vão ocorrer mais da forma clássica. Os novos autoritarismos que vemos na região, como os de Nayib Bukele [presidente de El Salvador] e [Jair] Bolsonaro [presidente do Brasil], não significam necessariamente a transformação desses países em regimes militares. Já não há golpes viáveis na América Latina. Há populistas que, uma vez eleitos, avançam contra as instituições e criam autocracias. Mas no geral as pessoas querem eleições, mesmo que para eleger esses populistas.

Bukele e [Pedro] Castillo [do Peru] são exemplos de respostas de uma população exausta, que vota em extremos, desconhecidos, com características paternalistas. Depois de eleitos, eles podem torcer as leis, avançar contra instituições.

Por outro lado, há mais poder das sociedades para impedir que se transformem em ditadores; não há um desejo por ditaduras. As pessoas saem mais às ruas. Os latino-americanos sabem que podem deixar clara a mensagem de que não querem mais um governo ou de que desejam colocar freios em um governo. Vimos isso em vários países em 2019, vimos no Brasil, estamos vendo em Cuba.

O México tem baixo apoio à democracia (43%), mas o presidente López Obrador tem mais de 60% de aprovação. É também um exemplo desse bom momento para os populistas? Claramente. López Obrador é um fenômeno a ser analisado. Teve fracassos importantes. Convocou um referendo [sobre corrupção] que teve 7% de comparecimento. Não consegue resolver a questão da violência, a política regional. Ainda assim, passa uma imagem de segurança aos mexicanos. Creio que, como outros, será cobrado depois da pandemia. Quando a emergência passar e os Estados voltarem a desinflar e a ocupar o lugar que tinham antes, acho que líderes paternalistas serão cobrados.

Como vê o caso da Nicarágua? A Nicarágua passou por esse processo, virou primeiro um sultanato em 2017, quando Daniel Ortega colocou sua mulher como vice-presidente. Passou a ser um país governado por uma família, como ocorria no Oriente Médio. Em 2018, com a repressão aos protestos e a perseguição a opositores, virou uma ditadura. Há atores da comunidade internacional que ainda não admitem que seja e creem que algo ainda pode ocorrer para evitar isso nas eleições de 7 de novembro. Mas isso é absurdo. Os candidatos de oposição foram presos, não há liberdade de expressão. Obviamente já é um país que passou do limite do que é uma ditadura.

E El Salvador, ainda é uma democracia? Não, Bukele já transgrediu contra a institucionalidade. Primeiro de modo simbólico, como quando "invadiu" o Congresso [em fevereiro de 2020]. Depois, de modo real, quando removeu os juízes da Suprema Corte [em maio]. Também tem atuado contra meios de comunicação. O que ainda não aconteceu foi uma perseguição concreta a opositores, com prisões políticas, mas já há um rompimento real com valores democráticos.

Na Venezuela ditatorial, a democracia aparece com um apoio alto, de 69%. Como vê as eleições regionais de 21 de novembro? Os venezuelanos se equivocam ao achar que podem tirar um ditador por meio das urnas. Isso não ocorre quase nunca. Aconteceu apenas no Chile [com o referendo de 1988, que decidiu pela saída de Augusto Pinochet], mas por uma razão específica. Pinochet pensou que não podia perder pelas urnas. E, quando se viu derrotado, permitiu que o resultado fosse validado, não tinha outra opção. Mas não é assim na Venezuela. [O ditador Nicolás] Maduro não dá mostras de que poderia aceitar um resultado adverso. Os venezuelanos deveriam voltar às ruas para exigir uma mudança.

Nesta semana tivemos mais um episódio de instabilidade política no Peru. É um país em que a aprovação da democracia está estável e baixa, em 46%. Como avalia o que ocorre ali? A eleição de Castillo é um exemplo de como os revolucionários de antes hoje atuam por meio das urnas. Foi uma escolha revolucionária como a dos bolivianos com Evo Morales em 2006. Um grito de desespero e de inconformismo com a elite política tradicional. Isso joga a favor da democracia. O problema é que o Peru destruiu sua elite política nas últimas décadas, já não há mais partidos, memória de como governar. E o grupo que chegou ao poder não tem preparo, não tem apoios, não consegue construir um consenso.

O Peru de hoje me faz lembrar o Equador de pouco antes de Rafael Correa, com uma sequência de presidentes que não conseguiram terminar o mandato. Mas Correa soube reformar a Constituição, realizar uma inclusão social e conseguir estabilizar o país. Não vemos essa tendência com Castillo, por enquanto.

Por isso, creio que no Peru as coisas ainda irão piorar antes que possam melhorar. Na verdade, o problema de fundo no Peru é um problema latino-americano. Não há, de modo geral, uma renovação da elite política.

Evo na Bolívia e Correa no Equador não realizaram uma renovação? A princípio, sim, mas parou neles. No caso de Moraels por vaidade, no de Correa por causa da corrupção. Ambos transformaram seus países, mas não prepararam a sucessão. Morales esticou a corda mais do que podia, e seu erro fez com que a Bolívia passasse por um período muito difícil. Correa não soube conquistar o apoio daqueles a quem havia favorecido com suas políticas. Ao final, os indígenas acabaram apoiando seu maior inimigo, um empresário liberal como Guillermo Lasso.

A falta de renovação da elite política não é de esquerda ou de direita, é geral. Está ocorrendo na Colômbia, no Chile. Não criar uma sucessão é um erro dos que vinham governando. Por isso não sabemos quem vai governar a Argentina depois do fim do kirchnerismo. Veja o Uruguai, em que quem está no poder é o filho de um ex-presidente. Só é renovação porque é mais jovem, mas é a mesma tradição política que governa o país hoje.

E como vê o cenário para as eleições no Chile [em 21 de novembro]? O candidato mais bem cotado é fruto de uma renovação, o esquerdista Gabriel Boric. Se ele vencer, como as pesquisas indicam que é o mais provável, representará uma mudança. Mas é preciso ver como organizará seu governo em termos de apoios. Os demais candidatos são mais do mesmo. São mais jovens, portanto é uma renovação etária, mas são novas encarnações de forças do passado, à esquerda e à direita.


Raio-X

Marta Lagos
Diretora-executiva e fundadora do Latinobarómetro. Mestra em economia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), trabalha com pesquisas de opinião desde 1984 e é consultora em processos eleitorais em 23 países. É membro do conselho de várias organizações chilenas e consultora do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), do Banco Mundial e do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)

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