Descrição de chapéu The New York Times África

Berço de levantes por democracia, Tunísia vê avanços da Primavera Árabe sob risco

Retorno do autoritarismo e crise econômica colocam modelo político adotado no país em xeque

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Vivian Yee
Túnis (Tunísia) | The New York Times

Por três meses depois de os tunisianos derrubarem seu ditador, em janeiro de 2011, numa explosão de protestos que eletrizou o mundo árabe, Ali Bousselmi sentiu “alegria pura”, nada mais.

A década que se seguiu, durante a qual os tunisianos adotaram uma nova Constituição, conquistaram liberdade de expressão e votaram em eleições livres e justas, trouxe suas recompensas próprias para Bousselmi. Ele ajudou a fundar uma entidade de defesa dos direitos dos gays –algo que teria sido impossível antes de 2011, quando o cenário LGBTQIA+ tinha obrigatoriamente que ser clandestino.

Mas, à medida que as grandes esperanças da revolução foram deteriorando em caos político e falência econômica, Bousselmi, como muitos outros tunisianos, começou a questionar se seu país não seria mais bem servido com um governante único, com poder suficiente para fazer as coisas acontecer.

Durante protesto contra medidas autoritárias do presidente da Tunísia, Kais Saied, um dos manifestante segura com a frase 'salve nossa democracia', em inglês - Zoubeir Souissi - 26.set.21/Reuters

“Eu me pergunto: o que fizemos com a democracia?” diz Bousselmi, 32, diretor-executivo da entidade Mawjoudin (Existimos, em árabe). “Temos parlamentares corruptos. Quando você sai à rua, vê que as pessoas não têm dinheiro nem sequer para um sanduíche. Mas de repente apareceu uma varinha mágica dizendo que as coisas iam mudar.”

A varinha estava nas mãos de Kais Saied, presidente democraticamente eleito que, no último 25 de julho, paralisou o Parlamento e afastou o primeiro-ministro, prometendo atacar a corrupção e devolver o poder ao povo. Foi um golpe que a maioria avassaladora dos tunisianos saudou com alívio e alegria.

O que aconteceu em 25 de julho faz com que seja ainda mais difícil apresentar uma narrativa esperançosa sobre a Primavera Árabe.

Citada por defensores ocidentais e árabes como uma prova de que a democracia pode, sim, florescer no Oriente Médio, a Tunísia agora está sendo vista por muitos como a confirmação cabal do fracasso das promessas do levante. Berço das revoltas árabes, hoje o país é governado por decreto –e por um homem só.

Em outras partes da região, as guerras que se seguiram aos levantes devastaram a Síria, a Líbia e o Iêmen. Autocratas sufocaram os protestos no Golfo. Os egípcios elegeram um presidente e depois abraçaram uma ditadura militar. Mesmo assim, as revoluções demonstraram que o poder, tradicionalmente exercido de cima para baixo, também pode ser impulsionado pela voz popular mobilizada.

Foi uma lição reafirmada pelos tunisianos, que recentemente voltaram às ruas para manifestar-se contra o Parlamento e a favor de Saied. Desta vez, contudo, a população protestou contra a democracia, não contra um líder autocrata.

“A Primavera Árabe vai continuar”, prevê Tarek Megerisi, especialista no norte da África no think tank European Council on Foreign Relations. “Por mais que se procure reprimi-lo ou por mais que possa mudar o ambiente em torno dele, a população desesperada vai tentar conquistar seus direitos.”

A popularidade de Saied deriva das queixas que impeliram tunisianos e outros a protestar uma década atrás –corrupção, desemprego, repressão e a incapacidade de pagar suas contas. Dez anos atrás os tunisianos se sentiam retrocedendo em virtualmente tudo, exceto a liberdade de expressão.

“Não ganhamos nada com a revolução”, diz Houyem Boukchina, 48, moradora de um bairro de classe trabalhadora de Túnis. “Ainda não sabemos qual é o plano, mas vivemos à base da esperança.”

Mas reações populares negativas ainda poderão colocar a autocracia em risco. Conscientes das insatisfações de seus cidadãos, governantes árabes, em vez de tentar lidar com os problemas, têm redobrado a repressão —atitude implacável que só aumenta o risco de mais turbulência no futuro, avisam analistas.

No caso de Saied, sua aposta depende do progresso econômico. A Tunísia está diante de uma crise fiscal iminente, com bilhões de dólares em dívida prestes a vencer. Se o governo demitir funcionários públicos e reduzir salários e subsídios, se os preços e o emprego não melhorarem, é provável que o sentimento popular mude radicalmente.

Um colapso econômico criaria problemas não apenas para Saied, mas também para a Europa, que todos os anos atrai milhares de migrantes tunisianos desesperados.

Mas o governo de Saied ainda não entrou em contato com representantes do FMI que o aguardam para negociar um pacote de resgate. E Saied não tomou nenhuma medida exceto pedir aos vendedores de frango e de ferro que baixem seus preços, dizendo-lhes que é seu dever à nação.

“As pessoas não necessariamente apoiam Saied. Elas odeiam o sistema que ele veio romper”, diz Megerisi. “Mas esse apoio vai desaparecer quando descobrirem que ele tampouco está fazendo qualquer coisa que as ajude.”

Para os governos ocidentais, que inicialmente apoiaram os levantes, mas, depois, em nome da estabilidade, voltaram a aliar-se com autocratas que sobreviveram a eles, a Tunísia talvez sirva de lembrete do que motivou os manifestantes árabes de uma década atrás –e o que pode levá-los a sair às ruas novamente.

Enquanto muitos manifestantes reivindicavam democracia, outros pediam resultados mais concretos: o fim da corrupção, empregos, alimentos a preços mais baixos.

Para quem estava de fora, foi fácil aplaudir as centenas de milhares de manifestantes que lotaram a praça Tahrir, no Cairo, e fácil esquecer dezenas de milhões de egípcios que ficaram em casa.

“As pessoas que protestaram para pedir Parlamento, democracia, liberdades, não foram a parte maior da revolução”, diz Yassine Ayari, deputado tunisiano independente detido recentemente depois de criticar o golpe de Saied. “Talvez muitos tunisianos não quisessem revolução. Talvez o povo só queira cerveja e segurança. É uma pergunta difícil. Mas não culpo o povo: tivemos uma oportunidade de mostrar como a democracia poderia mudar sua vida e fracassamos.”

A revolução deu aos tunisianos ferramentas para resolver problemas, mas não lhes ofereceu as soluções que eles queriam, segundo ele. "Com mais necessidades do que experiência de governo, a população teve pouca paciência com a democracia, processo desordenado e que demanda tempo".

Uma Constituição, eleições e um Parlamento não se traduziram automaticamente em novas oportunidades ou em responsabilização, situação que para muitos ocidentais pode parecer familiar. O clima no Parlamento deteriorou em xingamentos e brigas. Partidos foram formados e reformados sem propor ideias melhores. A corrupção se alastrou.

“Não penso que uma democracia liberal ao estilo ocidental possa ou deva ser algo capaz de ser importado pronto”, diz Elisabeth Kendall, da Universidade Oxford, especialista em estudos árabes e islâmicos. “Eleições são apenas o começo.”

Na Tunísia, a rejeição do sistema não significa necessariamente uma adesão ao governo de um homem só. Saied no mês passado suspendeu a validade de boa parte da Constituição e se outorgou autoridade única para criar leis; nesta semana, deu posse a um novo gabinete —incluindo uma primeira-ministra—, mas de poderes limitados. E, à medida que ele tem prendido opositores e tomado mais controle do país, mais tunisianos estão ficando preocupados.

“Alguém precisava fazer alguma coisa, mas agora esse processo está saindo dos trilhos”, diz a farmacêutica Azza Bel Jaafar, 67. “Espero que não haja mais islamismo, mas tampouco sou a favor de uma ditadura.”

Alguns tunisianos pró-democracia contam com a ideia de que a geração mais jovem não vá abrir mão facilmente das liberdades com a qual cresceu.

Tradução de Clara Allain 

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