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Governo de El Salvador sufocou investigação sobre pacto com gangues, diz ex-procurador

Denúncia aponta que gestão de Bukele teria beneficiado criminosos em troca de apoio político

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Sarah Kinosian
San Salvador | Reuters

Um ex-procurador anticorrupção de El Salvador disse que, no intuito de ampliar seu poder, a gestão do presidente Nayib Bukele encerrou a investigação conduzida por sua unidade sobre as alegadas negociações do governo com violentas gangues de rua. Isso teria ocorrido no momento em que os Estados Unidos intensificam a pressão sobre o país em torno dessas negociações.

German Arriaza, que encabeçou uma unidade anticorrupção no Ministério Público salvadorenho, disse que sua equipe compilou evidências documentais e fotográficas de que o governo de Bukele selou, em 2019, um pacto com as gangues Mara Salvatrucha (MS-13) e Barrio 18 para reduzir os índices de homicídio e ajudar o partido governista Novas Ideias a vencer as eleições legislativas de fevereiro.

É a primeira vez que um ex-funcionário salvadorenho acusa publicamente o governo Bukele de fechar um acordo com as gangues, que há pelo menos duas décadas assolam o país com extorsões e assassinatos frequentemente brutais. O encerramento da investigação de Arriaza e sua fuga para o exterior não haviam sido noticiados até agora.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele - Jose Cabezas - 15.dez.2021/Reuters

No último dia 8 de dezembro, o Departamento do Tesouro dos EUA também afirmou que as negociações entre o governo salvadorenho e as gangues ocorreram e impôs sanções a dois funcionários do governo que as teriam chefiado. A iniciativa fez parte de uma série de ações adotadas para marcar a Cúpula da Democracia chefiada pelo presidente Joe Biden.

Os EUA estão intensificando a pressão sobre a administração Bukele, mirando o que Washington chama de práticas antidemocráticas, como o enfraquecimento do Judiciário. Duas fontes disseram à agência de notícias Reuters que uma força-tarefa do Departamento de Justiça americano que combate os crimes da MS-13 nos EUA prepara acusações criminais contra dois funcionários salvadorenhos por sua alegada participação nas negociações.

O governo afastou Arriaza de seu cargo em maio de 2021, segundo seu aviso de transferência, ao qual a Reuters teve acesso, após um expurgo lançado por aliados legislativos de Bukele que afastou cinco juízes da Suprema Corte e o procurador-geral salvadorenho, substituídos por figuras leais ao governo.

Em seguida —segundo Arriaza, uma fonte do Ministério Público salvadorenho e dois funcionários do Departamento de Justiça dos EUA—, a investigação foi encerrada. Arriaza disse que, temendo retaliações do governo por ter aberto a investigação, ele imediatamente partiu para o exílio, e os membros de sua equipe, conhecida como Grupo Especial Antimáfia (GEA), ou se exilaram ou foram transferidos.

"Foram nossas investigações que levaram o governo a dissolver a unidade anticorrupção", disse, falando de um local fora de El Salvador que ele pediu que não fosse identificado.

A assessoria de imprensa de Bukele e o Ministério Público salvadorenho não responderam aos pedidos de declarações sobre o trabalho de Arriaza e o destino de seu inquérito. O presidente tem frequentemente negado relatos da mídia e alegações de oposicionistas de que o governo teria negociado uma trégua com as gangues.

A unidade de Arriaza produziu um relatório de uma investigação que começou em 2020 e foi baseada em grampos telefônicos, imagens obtidas por câmeras de segurança, fotos e documentos apreendidos. Segundo o ex-procurador, esse material mostrou que o vice-ministro da Justiça, Osiris Luna, e outro funcionário do governo, Carlos Marroquin, foram a presídios para negociar um pacto sigiloso com as gangues. O Departamento do Tesouro americano fez alegações semelhantes.

Arriaza diz que sua unidade descobriu que Luna e Marroquin, chefe de uma agência previdenciária, ofereceram às gangues condições melhores nos presídios, dinheiro e outros benefícios. Em troca, os criminosos reduziriam os índices de homicídio e dariam apoio eleitoral ao partido de Bukele nas eleições.

A Reuters teve acesso a 129 páginas do relatório. Autoridades dos EUA confirmaram a autenticidade do documento, cuja existência foi noticiada pela primeira vez em agosto pelo jornal digital salvadorenho El Faro. Luna e Marroquin não responderam a reiterados pedidos de declarações, e a Reuters não conseguiu encontrar qualquer representante legal deles.

As sanções dos EUA contra os dois intensificaram as tensões já existentes entre El Salvador e Washington, que vê Bukele cada vez mais autoritário.

Muitos integrantes da MS-13 foram condenados por homicídio e tráfico de drogas em cidades dos EUA, e vários dos líderes da gangue foram indiciados por terrorismo no distrito leste de Nova York. Autoridades americanas dizem que as gangues encomendaram assassinatos no país de dentro de prisões salvadorenhas.

Arriaza disse que passou a sofrer pressão em maio, quando o partido de Bukele ganhou a eleição, substituiu o procurador-geral e afastou juízes que ocupavam cargos elevados.

Ele contou que foi chamado para uma reunião em 5 de maio com o novo procurador-geral, Rodolfo Delgado, que lhe perguntou quais ações sua unidade estava levando adiante contra o governo.

Horas depois de dar a Delgado informações detalhadas sobre suas investigações, incluindo o inquérito sobre as negociações com as gangues, Arriaza recebeu um aviso escrito, ao qual a Reuters teve acesso, de que seria transferido à escola de promotores públicos de El Salvador para cumprir funções de assessor. Não foi possível obter declarações de Delgado sobre o caso.

Arriaza disse que, imediatamente após a reunião de 5 de maio, foi impedido de acessar seu escritório, computador e arquivos e que no mesmo dia abandonou o país para viver no exterior. Disse que teve medo de sofrer represálias do governo salvadorenho devido às investigações realizadas por sua equipe.

"Fui procurador público por mais de 18 anos, já processei casos de corrupção em todo o espectro político —políticos, juízes, policiais, membros de gangues, chefes do narcotráfico—, mas esta foi a primeira vez que senti que não tinha opção senão deixar o país."

Bukele, um dos líderes mais populares da América Latina, processou membros de governos anteriores por negociar com gangues em troca de apoio político.

Os rumores sobre uma trégua entre o governo de Bukele e as gangues começaram a circular quando o índice de homicídios no país caiu cerca de 50% no ano após sua chegada ao poder, em junho de 2019. Bukele atribuiu a queda nos homicídios às suas políticas públicas.

O relatório ao qual a Reuters teve acesso apresenta transcrições feitas por procuradores de supostas mensagens de áudio de telefones de integrantes das gangues, exigências escritas à mão supostamente pelas gangues e anotações em livros de registros detalhando com quais detentos os funcionários do governo teriam se reunido. O relatório também descreve alegadas tentativas de Luna de destruir provas das reuniões em presídios.

O material inclui imagens obtidas por câmeras de segurança que aparentemente mostram Luna em várias ocasiões entrando em dois presídios, acompanhado por pessoas cujos rostos estavam escondidos sob máscaras de esqui. Investigadores teriam identificado um dos mascarados como Marroquin.

O relatório da equipe também detalha investigações sobre a apropriação indevida de fundos prisionais e gastos ilícitos ligados à pandemia feitos por vários ministérios governamentais.

Tradução de Clara Allain

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