Império bilionário de drogas se expande sobre ruínas da guerra da Síria

Aliados de Bashar al-Assad produzem captagon, uma anfetamina, em territórios marcados pelo conflito

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Ben Hubbard Hwaida Saad
Beirute | The New York Times

Erguida sobre as cinzas da guerra que se arrasta na Síria há dez anos, uma indústria de drogas ilegais comandada por poderosos associados e parentes de Bashar al-Assad virou uma operação multibilionária, superando as exportações legais da Síria e convertendo o país no mais novo narcoestado mundial.

Seu produto principal é o captagon, uma anfetamina ilegal e que causa dependência, muito consumida na Arábia Saudita e em outros países árabes. As operações dessa indústria se estendem por toda a Síria e incluem as oficinas que produzem as pílulas, unidades em que elas são escondidas dentro de outros produtos para serem exportadas, e redes de contrabando para levá-las a mercados no exterior.

Uma investigação do New York Times descobriu que boa parte da produção e distribuição da droga é organizada pela 4ª Divisão Blindada do Exército sírio, uma unidade de elite comandada por Maher Assad, irmão caçula do líder sírio e um dos homens mais poderosos do país.

Cartaz com a imagem do ditador Bashar al-Assad pendurado em prédio em ruínas na cidade de Homs, na Síria
Cartaz com a imagem do ditador Bashar al-Assad pendurado em prédio em ruínas na cidade de Homs, na Síria - Sergei Ponomarev - 15.jun.14/The New York Times

Outros participantes incluem empresários com vínculos estreitos com o governo, a organização libanesa Hizbullah e outros membros da família de Assad, cujo sobrenome garante proteção às atividades ilegais.

As informações foram obtidas pela investigação do New York Times, baseada em dados disponibilizados por autoridades policiais de dez países e dezenas de entrevistas com especialistas internacionais e regionais em drogas, sírios com conhecimento do tráfico e funcionários atuais e antigos dos EUA.

O comércio de drogas emergiu no meio das ruínas de uma década de guerra que deixou a economia síria destruída, reduziu a maioria da população à miséria e deixou membros da elite militar, política e empresarial do país à procura de novas maneiras de ganhar dinheiro em divisas e contornar as sanções econômicas impostas pelos EUA. Hoje, a metanfetamina ilícita é a exportação mais valiosa da Síria, ultrapassando de longe os produtos legítimos do país, segundo um banco de dados compilado pelo New York Times de apreensões de captagon em todo o mundo.

Nos últimos anos, autoridades de Grécia, Itália, Arábia Saudita e outros países apreenderam centenas de milhões de pílulas, a maioria vinda de um único porto sírio controlado pelo governo. Segundo autoridades policiais, operações apreenderam drogas cujo valor para o consumidor final pode passar de US$ 1 bilhão.

No ano passado, a polícia italiana encontrou 84 milhões de comprimidos dentro de enormes rolos de papel e engrenagens metálicas. Em março, as autoridades da Malásia descobriram mais de 94 milhões de comprimidos de captagon fechados dentro das rodas de borracha de carrinhos de supermercado.

Especialistas em drogas dizem que essas apreensões provavelmente representam apenas uma fração das drogas transportadas. Mas elas dão uma pequena ideia do âmbito do tráfico, sugerindo que a indústria de captagon explodiu nos últimos anos. Mais de 250 milhões de pílulas da droga foram apreendidas em todo o mundo neste ano, o que representa mais de 18 vezes a quantidade confiscada quatro anos atrás.

Algo que preocupa ainda mais os governos da região é que a rede síria criada para traficar o captagon começou recentemente a vender drogas mais perigosas, como a metanfetamina, ou cristal, disseram autoridades de segurança regionais. Segundo eles, o maior obstáculo ao combate ao tráfico é o fato de este contar com o respaldo de um Estado que tem poucas razões para combatê-lo.

"A ideia de procurar o governo sírio para perguntar sobre cooperação é simplesmente absurda", disse Joel Rayburn, enviado especial dos EUA à Síria durante a administração Trump. "É literalmente o próprio governo sírio quem está exportando as drogas. Ele não está fazendo vista grossa enquanto cartéis de narcotráfico atuam livremente –ele é o próprio cartel de narcotráfico."

A ascensão de um narcoestado

O captagon foi produzido originalmente por uma empresa farmacêutica alemã para tratar transtorno de déficit de atenção e narcolepsia. Nos anos 1980, usuários na Arábia Saudita e outros países do Golfo Pérsico começaram a consumir a droga recreativamente, como energizante, para combater o medo e ficar acordados à noite para estudar para provas, trabalhar, festejar ou dirigir por longas distâncias.

As pílulas brancas eram estampadas com duas luas crescentes, o que lhes valeu seu apelido em árabe, "abu hilalain" (a que tem duas luas). No final dos anos 1980, quando se soube que o captagon gera dependência, ele foi proibido internacionalmente. Mas, para continuar a suprir o mercado no Golfo, a produção ilícita de captagon decolou, incluindo no vale do Bekaa, no Líbano, centro de produção de haxixe e reduto do Hizbullah, grupo militante apoiado pelo Irã que hoje faz parte do governo libanês.

O Captagon farmacêutico continha a metanfetamina fenitilina, mas a versão ilícita vendida hoje, frequentemente descrita como "captagon", com caixa baixa, geralmente contém um misto de anfetaminas, cafeínas e diversas outras substâncias para acrescentar volume.

As versões baratas são vendidas no varejo por menos de US$ 1 por comprimido na Síria, enquanto na Arábia Saudita os comprimidos de qualidade melhor podem sair por US$ 14 ou até mais a unidade.

Quando a guerra síria estourou, traficantes aproveitaram o caos para vender a droga a combatentes de todos os lados, que passaram a tomá-la para dotar-se de mais coragem. Sírios de espírito empreendedor começaram a produzi-la, com farmácias locais e máquinas de fábricas farmacêuticas desativadas.

A Síria possuía os componentes necessários: pessoal especializado para misturar as drogas, fábricas para produzir mercadorias nas quais poderiam esconder as pílulas, acesso às rotas comerciais do Mediterrâneo e rotas de contrabando já estabelecidas para a Jordânia, o Líbano e o Iraque.

À medida que a guerra foi se arrastando, a economia síria desmoronou e, cada vez mais, associados de Assad viraram alvos de sanções internacionais. Alguns deles investiram no captagon. Formou-se assim um cartel ligado ao Estado, reunindo militares, líderes de milícias, comerciantes cujos negócios tinham crescido com a guerra e familiares de Assad.

Segundo sírios que vivem em áreas onde a droga é produzida, os laboratórios de captagon estão espalhados por partes da Síria sob controle do governo: em territórios controlados pelo Hizbullah perto da fronteira libanesa; na periferia de Damasco e em volta de Latakia, cidade à beira do Mediterrâneo.

Muitas das fábricas são pequenas, instaladas em hangares metálicos ou em grandes residências hoje vazias. Nelas, trabalhadores combinam as substâncias com outros adicionais e usam máquinas simples para prensá-las, formando pílulas, segundo dois sírios que estiveram nesses locais. Alguns dos lugares são vigiados por soldados. Outros ostentam placas que os declaram zonas militares de acesso proibido.

Os comprimidos acabados são escondidos em fundos falsos de contêineres de transporte marítimo, em embalagens de leite, de chá e de sabonete e em carregamentos de uvas, laranjas ou romãs. A seguir, são contrabandeados por terra para a Jordânia e para o Líbano, de onde alguns partem por aeroportos e pelo porto marítimo de Beirute. A parte maior deixa a Síria pelo porto de Latakia.

O escritório de segurança da 4ª Divisão, chefiado pelo major general Ghassan Bilal, é responsável por boa parte do sistema nervoso da rede. Segundo autoridades de segurança regionais e um ex-oficial militar sírio, as tropas do escritório de segurança protegem muitas das fábricas e facilitam o transporte da droga para as fronteiras da Síria e para o porto. "A presença da divisão na região é perigosa", disse o coronel Hassan Alqudah, diretor do departamento de narcóticos do Diretório de Segurança Pública da Jordânia. "As fábricas de captagon estão presentes nas áreas sob o controle e a proteção da 4ª Divisão."

Não foi possível obter declarações de Maher Assad ou de Bilal. Representantes do Ministério sírio da Informação e da missão diplomática síria em Viena não responderam a pedidos de comentários. O líder do Hizbullah, Hassan Nasrallah, nega que seu grupo tenha qualquer envolvimento com captagon.

Outros sírios proeminentes participam do negócio. Uma figura chave que atua perto de Damasco é o empresário Amer Khiti, cuja ascensão é emblemática da nova classe de empresários sírios que cresceram durante a guerra, segundo antigos funcionários dos EUA e sírios com conhecimento do tráfico de drogas.

Originalmente um modesto comerciante de gado, Khiti tornou-se contrabandista durante a guerra, transportando alimentos e outros bens entre Damasco e subúrbios dominados pelos rebeldes. Ele agia com o apoio do Estado, segundo Sami Adel, ativista da cidade natal de Khiti que acompanha a vida deste.

Quando os rebeldes foram expulsos dos subúrbios, Khiti comprou imóveis nessa área e investiu nas fábricas de embalagem usadas para o tráfico de captagon.

Outra figura que começou pobre e enriqueceu com a guerra é Khodr Taher, ex-vendedor de frango que supervisiona os postos de controle da 4ª Divisão em todo o país. Segundo autoridades de segurança e sírios com conhecimento do tráfico, Taher facilitava a passagem de captagon pelos postos de controle.

Khiti não respondeu a pedidos de declarações, e os esforços para contatar Taher por meio de suas empresas foram infrutíferos. Segundo Jihad Yazigi, editor da publicação The Syria Report, que acompanha a economia síria, o captagon tornou-se provavelmente a maior fonte de moeda estrangeira no país.

"Isso não significa que a receita ganha esteja sendo reinvestida na economia", disse. "A maior parte vai parar nas contas bancárias de traficantes e chefes militares irregulares."

Chegando à Jordânia

Embora as autoridades europeias tenham dificuldade em identificar traficantes, a Jordânia, uma das aliadas mais próximas dos EUA no Oriente Médio, está na linha de frente de uma narcoguerra regional.

"A Jordânia é o portão de entrada para o Golfo", disse, durante uma visita à região, o brigadeiro general Ahmad al-Sarhan, comandante de uma unidade do Exército na fronteira da Jordânia com a Síria.

O tráfico de drogas preocupa as autoridades jordanianas por muitas razões.

Os volumes traficados vêm aumentando. O número de comprimidos de captagon apreendidos no país neste ano é quase o dobro do de 2020, segundo Alqudah, diretor do departamento de narcóticos.

Originalmente, a Jordânia era apenas parte do caminho para a Arábia Saudita, mas hoje até um quinto da droga contrabandeada da Síria é consumida na Jordânia, estimou ele. O aumento da oferta levou o preço do captagon a cair, e, assim, estudantes se viciam mais facilmente.

Ainda mais preocupante, disse Alqudah, é o volume crescente de metanfetamina que está chegando à Jordânia vindo da Síria. O cristal representa um perigo maior que o captagon. A Jordânia apreendeu 60 kg de cristal entre janeiro e outubro deste ano, contra 20 kg no ano passado.

"Estamos num estágio perigoso, porque não temos como voltar para trás", disse o psiquiatra jordaniano Morad al-Ayasrah, que trata viciados em drogas. "Estamos avançando, e as drogas, aumentando."

Tradução de Clara Allain  

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