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Guerra na Ucrânia Rússia

De olho em sua biografia, Putin vê perda da Ucrânia como inadmissível

Presidente russo busca construir legado histórico de restauração do poder do Kremlin

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Jaime Spitzcovsky

Desde a chegada à Presidência, há mais de duas décadas, Vladimir Putin se arvora em ser comandante de uma missão de dimensões imperiais: recuperar o poder do Kremlin, após anos de irrefreável declínio. E, de olho em sua biografia, o dirigente russo sinaliza como inadmissível entrar para a história na condição de responsável por permitir à Ucrânia escapar da órbita de influência de Moscou.

Portanto, no cálculo a levá-lo a deslanchar a guerra, desponta também a preocupação com os contornos históricos de seu domínio no Kremlin. Putin certamente avalia a perda geopolítica da Ucrânia, com a aproximação do país a estruturas modeladas pelos EUA, como a principal derrota de seu projeto nacionalista.

E, em sua agenda, reconquistar a influência sobre Kiev representa pedra angular desde 2014, quando da chegada ao poder de partidos ucranianos pró-Washington.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante entrevista coletiva em Moscou - Thibault Camus - 7.fev.22/AFP

"A Rússia tem sido uma grande potência ao longo de séculos e permanece como tal. Sempre teve e ainda tem legítimas zonas de interesse", sustentou Putin em um de seus primeiros pronunciamentos públicos, no final dos anos 1990. Ensaiava os primeiros passos na política moscovita o dono de trajetória no aparato de segurança coroada com o comando da FSB, uma das agências sucessoras da KGB e responsável pelo cenário doméstico.

Referindo-se a uma dimensão externa de seu mapa de recuperação do poder estatal russo, prosseguiu Putin: "Não devemos baixar a guarda nesse campo, nem devemos permitir que nossa opinião seja ignorada".

A 16 de agosto de 1999, a Duma, Câmara baixa do Parlamento russo, reuniu-se para ouvir o discurso de uma figura até então obscura no cenário político e para votar sua indicação ao cargo de primeiro-ministro. A Rússia atravessava as turbulências da era Boris Ieltsin.

O então presidente despontava como o responsável por, oito anos antes, comandar a dissolução da União Soviética, abalar as estruturas bolcheviques e, na política externa, buscar aproximação com a Casa Branca. Protagonizou cenas históricas como desabridas gargalhadas com o norte-americano Bill Clinton, em entrevista coletiva em Nova York, em 1995.

Ieltsin, se bem-sucedido no desmonte da URSS e na ampliação de liberdades democráticas em um país com tradições ditatoriais de tempos czarista e bolchevique, colheu fracassos acachapantes nos planos externo e doméstico. Ordenou o bombardeio de um Parlamento dominado pela oposição e não conseguiu obter apoio robusto ocidental para a recuperação da decrépita economia russa, epicentro de uma crise com reverberações globais em 1998.

O ieltsinismo passara a reinar seis anos antes, com o colapso da URSS e a renúncia de Mikhail Gorbatchov, o arquiteto da perestroika. A era de reformas soviéticas, entre 1985 e 1991, concedeu liberdades inéditas à população, em áreas como liberdade de expressão e prática religiosa, mas também levou a superpotência nuclear a viver sua mais intensa crise econômica desde a Segunda Guerra Mundial, evidenciada pela chegada de ajuda humanitária internacional.

Ao articular as primeiras palavras de seu discurso na Duma, em 1999, Vladimir Putin já buscava sinalizar o projeto de ruptura com o esmaecimento do poder estatal e com as turbulências das eras Gorbatchov e Ieltsin. O ex-espião falava em recuperar "a lei e a ordem".

A passagem pela Duma correspondia a um ritual político. Putin chegava ao governo a partir de articulação sustentada por um setor da sociedade russa denominado "siloviki" (sil, em russo, significa força), integrantes do aparelho estatal de segurança, como a antiga KGB e Forças Armadas. A ofensiva buscava estancar a sangria de poder do Kremlin.

Putin, como ensaiado, obteve apoio dos deputados e virou primeiro-ministro, o quinto ocupante do cargo em 17 meses, em meio ao modus operandi mercurial do ieltsinismo. Próximo passo do projeto restaurador, Ieltsin renunciou à Presidência a 31 de dezembro de 1999 e escancarou o caminho para a era putinista.

De início, o novo ocupante do trono atacou dois focos fundamentais da erosão do poder estatal, fortalecidos durante o período anterior. Primeiro, os chamados oligarcas, figurões bilionários da economia pós-soviética, cujas fortunas haviam sido amealhadas, em boa medida, graças a relevantes e, à época, indispensáveis conexões políticas.

Oligarcas, nos tempos de Ieltsin, passaram a influenciar também rumos do Kremlin. Putin sufocou ambições políticas dos bilionários, e os responsáveis por ousados desafios às novas diretrizes, como Mikhail Khodorkovski e Boris Berezovski, enfrentaram cárcere ou exílio.

O ex-diretor da FSB atacou outro polo alternativo de poder: lideranças regionais. Exemplo mais radical da tendência correspondia ao separatismo da Tchetchênia, região habitada por uma minoria muçulmana.

Forças Armadas russas deslancharam sangrenta guerra contra os separatistas, a segunda em menos de cinco anos. E, na primeira, Moscou amargou derrota, incapaz de dobrar as aspirações independentistas de uma área com apenas cerca de 1 milhão de habitantes.

As ações lideradas no Cáucaso por um Putin recém-chegado ao poder resultaram em vitória para o Kremlin, após conflito devastador na Tchetchênia. O projeto restaurador acumulava os primeiros triunfos.

Superados reptos iniciais, Putin focou em administrar a recuperação econômica baseada em altas nas cotações de petróleo e gás natural e em consolidar o poder político, injetando autoritarismo nas frágeis estruturas pós-soviéticas.

E, anos depois, eclodiram desafios no chamado "exterior próximo", como o Kremlin costuma se referir a ex-repúblicas soviéticas, no entorno de suas fronteiras. Países como Ucrânia e Geórgia alimentaram demandas por adesão à Otan, a aliança militar liderada pelos EUA.

E Putin, o czar do projeto restaurador, não admite ver sua biografia esculpida pela perda das chamadas áreas de influência, em particular de um país com a importância política, estratégica, econômica e histórica da Ucrânia.

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