"Não é bem mais fácil em inglês?", pergunta Hikmat Daoud Hanna para o aluno Hudson Franklin Novak, sobre as diferenças entre pronomes possessivos na língua inglesa e na portuguesa. Na ampla sala da Biblioteca Pública do Paraná, em Curitiba, Hikmat é reconhecido por uma família, que tira fotos da aula: "Podem continuar, não queremos atrapalhar o senhor".
No início de março, uma publicação nas redes sociais da fotógrafa Francielle Machoski em que o iraquiano de 88 anos oferecia aulas na feira do largo da Ordem, na capital do Paraná, viralizou. Em seus cartazes, liam-se frases como "Ensino inglês gratuitamente" ou "Reforço de inglês gratuito".
A repercussão transformou a vida dos dois: Francielle pausou a vida profissional para atender a todos que procuram o professor, que não tem celular.
Em menos de um mês, o perfil no Instagram criado por ela para Hikmat beira os 25 mil seguidores. "Algumas publicações chegaram a 8.000 visualizações. Tem bom engajamento orgânico e sempre muitas mensagens de carinho", conta.
Devoto de Nossa Senhora, "Seu Henrique" —apelido surgido da abreviação "Hik"— encontrou na Parábola dos Talentos a inspiração para ensinar inglês de graça. A passagem bíblica ensina que não se deve desperdiçar os recursos disponíveis e que há formas de multiplicá-los.
Ele conta que teve alunos em muitos lugares: de colégios estaduais a associações de moradores e igrejas na Bahia —onde morou por 15 anos, até o fim de 2021— e no Paraná.
Hudson Franklin foi um dos primeiros interessados nas aulas oferecidas no largo. Os encontros ocorrem como preparação para a prova de proficiência que o mestrando em bioética fará em um ano e meio.
Não é a primeira vez que Hudson busca dominar a língua inglesa. "Tive experiências com outros professores, inclusive pagos, mas não me identifiquei. Ele faz com que eu reviva tudo de uma maneira diferente, é como um bate-papo", conta.
"Henrique" conta ter criado um método para fixar as regras gramaticais, o que permitiria a construção de frases de forma mais natural. A regra é lecionar por uma hora, uma vez por semana. Ele garante que, se o aluno se esforçar, é capaz de conversar em inglês em não mais que quatro meses.
O aposentado conhece bem as dificuldades encontradas para cruzar a barreira do idioma. Aprendeu o inglês ainda em Bagdá, onde nasceu, vencendo as diferenças entre o alfabeto latino e o sistema de escrita do árabe, sua língua materna.
Na juventude, cursou filosofia na Universidade Católica de Roma. "O professor falava em latim por 45 minutos e eu ficava sem entender nada, decepcionado", lembra. Mas, depois que entendeu a base dos idiomas latinos, ficou mais fácil se arriscar no francês, no espanhol e, 20 anos mais tarde, no português, quando veio para o Brasil em 1970.
Hikmat tem hoje cinco alunos por semana. Não cobra nem mesmo o deslocamento até a casa deles, feito de ônibus. Com o sucesso nas redes sociais, Francielle criou um formulário online para interessados nas aulas. Segundo ela, as inscrições passaram a casa das 2.000, o que motivou a criação de um canal no YouTube para expandir o público.
"Recebemos muitas mensagens de pessoas que sonham com a oportunidade de aprender inglês, mas moram em outras cidades", conta a fotógrafa. A primeira aula online foi ao ar no fim de março e somou 2.500 visualizações em duas semanas.
O professor foi notado nas redes por personalidades como a cantora Vanessa da Mata e a jornalista Patrícia Poeta, mas o reconhecimento se estendeu para o mundo real. Além de abordado para fotos e conversas, ele foi homenageado pela Câmara Municipal de Curitiba por suas contribuições na área da educação.
O professor e a fotógrafa agora planejam realizar alguns sonhos. Um financiamento coletivo foi criado para que ele possa sair do apartamento que divide com a ex-mulher e ter um local para receber os alunos. Também negociam a publicação de três livros escritos pelo professor —dois deles são dicionários escritos à mão com mais de 9.000 verbetes, um português-árabe e um italiano-árabe.
O tempo livre, escasso no último mês, "Henrique" passa lendo, escrevendo e fazendo trabalho voluntário no Mesa Solidária, programa municipal de refeições populares. Para quem quiser encontrá-lo, a dica é procurar pelo largo da Ordem e suas proximidades, sempre aos domingos.
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