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Rafael Mafei

Quem procura paralelos às ameaças contra o STF deve olhar para a Polônia, não para os EUA

Querelas nas quais tribunais brasileiro e americano estão envolvidos têm semelhanças, mas importantes diferenças

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Rafael Mafei

Livre-docente em direito, professor da Faculdade de Direito da USP e autor de "Como Remover um Presidente" (ed. Zahar)

Tanto o STF (Supremo Tribunal Federal) quanto a Suprema Corte americana estão no centro de agudos embates políticos. Vistas de longe, as querelas se parecem, mas no detalhe há importantes diferenças.

Nos EUA, o tribunal está sob ataque pela provável reversão de precedentes sobre o direito ao aborto firmados em 1973 e 1992. Um dos juízes que deve compor a nova maioria é visto como ocupante de vaga que o Partido Republicano "roubou" dos democratas, pois o último nome indicado por Barack Obama não chegou a ser apreciado pelo Senado: a indicação em final de mandato presidencial foi obstruída.

O ministro Alexandre de Moraes durante sessão do Supremo Tribunal Federal, em Brasília
O ministro Alexandre de Moraes durante sessão do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Pedro Ladeira - 24.out.19/Folhapress

Na sequência, o republicano Donald Trump tornou-se presidente e igualmente teve uma indicação no final de seu mandato. Aí a conversa dos republicanos mudou: nada de deixar para o próximo presidente. A iminente reversão da jurisprudência pró-aborto só será possível graças a esse "assento roubado".

A proposta mais radical e mais interventiva, de aumentar o número de juízes no tribunal para dar ao presidente Joe Biden umas indicações a mais, é ilusória. Os democratas não teriam maioria para aprová-la nem se quisessem. Mas a questão de fundo que tal proposta enfrenta é um desafio real à legitimidade do tribunal. A percepção de que a atual correlação de forças na corte está desequilibrada pelo jogo sujo dos republicanos prejudica a confiabilidade de suas decisões.

Na mesa estão também propostas de reforma que são seriamente debatidas por juristas e cientistas políticos há muito tempo, em um quadro de normalidade democrática e compromisso com a integridade da corte. A principal delas refere-se à instituição de uma idade-limite ou de um mandato fixo para ser juiz no tribunal, o que obrigaria seus membros a se aposentarem em um momento preestabelecido.

Já no Brasil, a banda da investida contra o STF toca em outro diapasão. Quem fala contra o tribunal não é um partido que perdeu o direito de indicar um membro à corte pela quebra de fair play dos adversários, mas um presidente que não aceita aquilo com que todos os presidentes têm de conviver: decisões contrárias a seus interesses tomadas por juízes que ele não escolheu e que não respondem a ele.

Enquanto nos EUA os temas de fundo dos debates sobre a Suprema Corte estão inseridos em uma longa tradição de reflexão sobre a tutela ampliada de direitos constitucionais pelo Judiciário, a pauta de contestações ao STF no Brasil oscila segundo a biruta política da semana: hoje é o indulto, antes foram decretos de armas, as ações na pandemia ou alguma medida de desmonte ambiental.

E amanhã, já sabemos, serão candidaturas, urnas e as próprias eleições. O que existe é o desejo do confronto para subjugar o tribunal, sendo um direito qualquer o mero pretexto para cada nova briga.

Trump nunca subiu no palanque para anunciar desobediência à juíza Ruth Bader Ginsburg (1933-2020). Nenhum deputado do Tea Party ameaçou juízes da Suprema Corte dos EUA de violência física. Nenhum general do Exército publicou no Twitter ameaça ao tribunal antes de julgamento algum, mesmo nos muitos casos em que temas diretamente sensíveis à segurança nacional de fato estiveram em jogo.

Quem procura paralelos às ameaças contra o STF deve olhar não para os EUA, mas para a Polônia. Por lá, o partido dominante, o PiS (Lei e Justiça), investiu contra o Judiciário, inclusive a Suprema Corte, por meio de aposentadorias compulsórias e intimidações disciplinares. Não há dúvidas de que esta pauta está no horizonte de um segundo mandato de Bolsonaro, idealmente com mais apoio no Senado.

Decisões de tribunais às vezes são boas e às vezes ruins. Críticas duras fazem parte do debate democrático, como discussões sobre reforma das instituições de Justiça. O diabo mora nas intenções —e Bolsonaro não esconde as suas. Só não as vê quem confunde os democratas com a autocracia polonesa.

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