Descrição de chapéu Onde se fala português Ásia

Reafirmar independência é movimento contínuo, diz ex-ministro do Timor Leste

Roque Rodrigues, que buscou apoio para uma das mais jovens nações do mundo, analisa 20 anos de independência

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Guarulhos

Roque Rodrigues, 72, fez em 1995 uma de suas primeiras visitas ao Brasil, em busca de apoio diplomático para seu país, o Timor Leste, que dali a poucos anos conquistaria a independência da Indonésia. Foi, no entanto, crítico ao que encontrou. Disse que Brasília era "tímida em relação ao problema".

Nos lusófonos Moçambique, Angola e Portugal, Roque fez o que os timorenses que lutavam contra o país vizinho chamavam de frente diplomática da resistência. Mais de duas décadas depois e na semana dos 20 anos da independência timorense, celebrados nesta sexta (20), diz que a integração segue essencial.

Soldados da Indonésia, que havia invadido o Timor Leste e ocupado o país em 1975, realizam cerimônia em Díli poucas semanas antes do referendo que optaria pela independência - 13.ago.99/AFP

"A soberania de países, particularmente os do tamanho do nosso, está sempre ameaçada", diz à Folha. "As independências cada vez mais se perdem mesmo quando não há a invasão de tanques de guerra."

O timorense, que depois foi ministro da Defesa e conselheiro para política externa, afirma que o país quer maior integração com o Sudeste Asiático, mas sem se afastar dos parceiros lusófonos. Sobre a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), que o Timor integra com Brasil e outras sete nações, diz que Luiz Inácio Lula da Silva (PT), se eleito, seria capaz de liderar a atuação do bloco.

Roque também fala sobre a importância da língua portuguesa, os embates geracionais e a figura de Sergio Vieira de Mello (1948-2003), que chefiou a missão da ONU no Timor Leste.

Vinte anos após a restauração da independência, quais desafios elencaria como os principais? Nós vivemos —não só o Timor Leste, como o mundo— um período de crescente incerteza. Por isso, o primeiro desafio seria aprofundar a nossa integração na região e no mundo, reafirmando a nossa soberania. Gostaríamos que cada vez mais se afirmasse a multipolaridade.

No plano interno, temos de combater a pobreza e criar políticas geradoras de emprego, porque somos um país jovem, com taxa de natalidade grande. Ou seja, diversificar a economia. A independência não tem sentido enquanto todas as pessoas não viverem com o mínimo de dignidade e decência.

Roque Rodrigues, representante da resistência timorense no exterior, em atividade no Japão, em ano desconhecido, em busca de solidariedade e apoio para a independência do país - Arquivo da Resistência Timorense

A inserção internacional que o senhor fala focaria o Sudeste Asiático? Não tenho dúvida nenhuma de que, do ponto de vista de intercâmbio comercial, os nossos maiores parceiros estão na região. Porém, a nossa afirmação se deveu a um "rosto" diferente. Temos de olhar para o parentesco de alma, como diz o moçambicano Mia Couto. Olhemos para a língua portuguesa ou para a religião católica, duas ferramentas que vieram de fora e ajudaram a construir a nossa alma e a nossa identidade. Por isso, damos importância e uma relação privilegiada aos países de língua portuguesa. Não fosse o abrigo que encontramos nos países onde se fala oficialmente português e não teria sido possível restaurar a nossa independência.

Quem nos acolheu para fazer trabalho solidário de natureza externa, político-diplomático, foram essas nações. Virar as costas apenas em razão dos lucros seria um lado de pura estupidez. É preciso gerir o equilíbrio entre as necessidades de natureza objetiva e econômica e, por outro lado, aprofundar a nossa condição de falante também de língua portuguesa.

O país vive um aparente conflito geracional entre os de 1975, que participaram das duas independências e seguem no poder desde 2002, e a que cresceu sob a ocupação indonésia. Há muita gente que diz que a geração de 1975, a minha, está no poder há muitos anos. É e não é verdade. Por um lado, o vértice mais importante do poder tem estado na geração que lutou pela independência do país. Mas a cada geração há uma tarefa. A minha tinha um só propósito: resgatar a soberania que nos foi roubada. À geração que vem a seguir cabe aprofundar a independência e enraizar um desenvolvimento baseado na justiça social. Transferir o poder no exercício do poder nunca foi fácil em parte nenhuma, mas estamos a fazê-lo.

É preciso ter em conta que o futuro é povoado de incertezas e que a independência e a soberania de países, particularmente os do tamanho do nosso, estão sempre a ser ameaçadas. Portanto é necessário preparar uma geração resiliente que tenha em conta princípios fundamentais. Não basta ter competência técnica e científica, é preciso, sobretudo, estar munido de grandes valores éticos.

Como a língua se insere nesse embate? O português é uma língua oficial, mas falado por poucas pessoas. Há uma diferença entre a língua nacional e a "nacionalitária". A nacional é a que nasceu aqui, cresceu aqui e se expandiu aqui. A nacionalitária é a que, vindo de onde veio, torna-se patrimônio das comunidades do território em que entra e começa a ser o cinzel com que se modela a identidade de um povo.

Um casamento tem de ser celebrado entre elas para, por um lado, haver a modernização da língua tétum e, por outro, o disseminar da língua portuguesa. Por outro lado, importa dizer que somos o único país oficial de língua portuguesa nessa região do mundo, que está a ganhar a maior centralidade estratégica.

Como lidam com a influência atual da Indonésia? O movimento de reafirmação da soberania e consolidação da independência é imparável. Não há tréguas. Não é uma questão de haver inimigos, mas de que as independências cada vez mais se perdem mesmo quando não há invasão de blindados ou de tanques de guerra. A influência é vasta por meio de soft power, e Timor tem de estar preservado por ser um país pequeno. Temos que trabalhar a nossa identidade geopolítica. Com a Indonésia, temos ótimas relações. Cada vez mais nossa parceria é entre iguais, independentemente do desequilíbrio de tamanhos.

Reunião entre lideranças do comitê externo da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente em 1980; da esq. para a dir.: Roque Rodrigues, Mari Alkatiri Abílio Araújo, José Luís Guterres e José Ramos-Horta - Arquivo da Resistência Timorense

Passados 20 anos, como enxergam a missão da ONU? Num país como Timor Leste, a ONU não vem para partir do zero. Ela pôde fazer tábua rasa de toda a experiência de luta de libertação, do genocídio que teve lugar em Timor. E o personagem que percebeu perfeitamente que Timor tinha um povo com experiência humana notável foi Sergio Vieira de Mello. O mundo, nós próprios e o Brasil não fizeram justiça ao papel de Sergio. Tive muitas discussões com ele, mas aprendi a admirá-lo. Ele tinha qualidades indispensáveis para o mundo de hoje. Um personagem crucial, sabia fazer pontes, sabia escutar. Ele é uma raridade.

A diplomacia brasileira passou por transformações no governo Bolsonaro, especialmente no que diz respeito às relações Sul-Sul. Isso impactou a relação com o Timor? O Brasil era a sexta maior economia do mundo, um parceiro respeitado pelas superpotências, tanto pelos EUA quanto pela Rússia, pela China e pelo bloco africano. O Brasil hoje está na 11ª posição. Em quatro anos, desmantelou-se o porte de potência ao qual o Brasil tinha justíssimo direito. Quando a economia vai mal, a diplomacia vai mal.

O Brasil mandou para cá, no passado, contingentes militares que responderam pela segurança dos nossos mais altos dirigentes. Mandou equipes inteiras de educadores e abriu as portas na formação da área industrial por meio do Senai. Quero acreditar que, em 2023, sob a insígnia de uma nova Presidência, vamos relançar e aprofundar a cooperação entre o Brasil e o Timor Leste.

E em relação à parceria dos países na CPLP? Acadêmicos que acompanham a comunidade dizem que ela está aquém do que poderia oferecer. O mundo precisa de personalidades capazes de criar pontes, não fazer ilhas. A CPLP pode vir a ser uma ilha com 280 milhões de habitantes. Gostaríamos de fazer dela uma ponte que dialoga com o mundo. No meu ponto de vista, se há personagem capaz de fazer isso, dotado de carisma e empatia, é Luiz Inácio Lula da Silva. Fui o primeiro timorense a conhecer Lula. Passei dias com ele em Guarapari, muito antes de ele ser presidente, e pude verificar ali sua capacidade. Precisamos de um pontífice, não de quem constrói muros. De muros estamos fartos.


Raio-x | Roque Rodrigues, 72

Nascido em Díli com ascendência indiana —mais especificamente de Goa, antiga colônia portuguesa—, estudou psicologia em Lisboa e integrou o serviço militar. Enviado pela Frente Revolucionária do Timor Leste Independente (Fretilin) para Moçambique em 1975, foi representante em Maputo e, depois, em Luanda. Em Portugal, foi representante do Conselho Nacional da Resistência Timorense. Voltou ao Timor em janeiro de 2000, quando assumiu uma série de cargos públicos, entre os quais o de ministro da Defesa, vice-ministro da Cultura e conselheiro para assuntos internacionais da Presidência.

Erramos: o texto foi alterado

O Timor Leste foi o primeiro país a se tornar independente no século 21, mas não é a mais jovem nação do período, como afirmava versão anterior da reportagem.

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