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Leonardo Sakamoto

Timor Leste ensinou que resistência de um povo pode engolir exércitos

Em depoimento, jornalista relembra trajeto até visita a acampamento das Forças Armadas de Libertação Nacional

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Leonardo Sakamoto

Jornalista e colunista do UOL. Cobriu o conflito pela independência do Timor Leste em 1998

De um lado, um padre, o marido-guerrilheiro, Nossa Senhora de Fátima. A filha e o genro, no melhor estilo do casamento tribal, enrolados nos coloridos tecidos tradicionais, e chapéus chifrudos que bem podiam pertencer a um viking. Do outro lado, o irmão preso, condenado por querer o país liberto da Indonésia.

As pessoas emolduradas nas paredes da sala de Linda me vigiavam naquele sábado de setembro de 1998. Os olhares no Timor ocupado pela Indonésia pareciam sempre monitorar alguém. Sentado naquele sofá, tive a mesma sensação de andar por algumas ruas da capital Díli ou pelos corredores do meu hotel.

Treinamento no acampamento central da guerrilha timorense, em 1998
Treinamento no acampamento central da guerrilha timorense, em 1998 - Leonardo Sakamoto

Aquele dia, em especial, havia sido tenso. Não era fácil receber autorização para subir ao acampamento central da guerrilha nas montanhas. Seria o ponto alto de mais de um mês cobrindo a luta timorense contra a invasão e de outras tantas semanas entrevistando pessoas-chave em outros países a fim de entender a guerra nesse canto da Ásia que, vejam só, fala português.

Por via das dúvidas, havia fechado a conta no hotel. Deixei bagagem, dinheiro, anotações, documentos com uma irmã no Convento das Salesianas. O Exército não teria coragem de invadir a casa das freiras. Não naquele momento, em que a Indonésia tentava garantir apoio internacional para sair de um atoleiro econômico sem precedentes —crise que facilitou o caminho para a independência do Timor.

"Julião me ligou. Disse que estava com um problema. Você vai subir sozinho com os mensageiros", disse Linda. A presença do Julião, de quem fiquei próximo, me dava uma sensação de tranquilidade.

Quando visitei o cemitério de Santa Cruz, onde, em 1991, centenas de jovens foram massacrados pelo Exército indonésio durante o enterro de um membro da resistência, ele contornou uma abordagem de soldados. As imagens das mortes ajudaram a alertar o mundo sobre as atrocidades em curso.

Céu sem lua, noite escura. As estrelas competiam com os postes de luz para ver quem iluminava menos as ruas de Díli, capital de Timor Leste. Seca. Sede. Sono. Não deu tempo para descansar ou comer. O sol já havia se posto quando um jipe veio me buscar. Pediram para que eu entrasse rapidamente, pois poderia haver algum espião por perto. "Então o senhor é o brasileiro? Pensei que se parecesse com o Ronaldinho."

Fomos pulando de casa em casa entre Díli e o interior da ilha, sempre aguardando uma janela de oportunidade para avançar com segurança. Em uma das residências, começaram a discutir qual era o melhor caminho a tomar, em tétum –o mais importante das dezenas de dialetos nativos e, por isso, uma das línguas oficiais. Apesar das aulas, a única linguagem que compreendia era o zumbido dos mosquitos.

Começamos a caminhada à meia-noite. Durante seis horas, andamos quase que ininterruptamente, boa parte do tempo por dentro de um rio, com água na cintura, para não deixar rastros. Quando chegamos ao acampamento central da guerrilha, amanhecia. Boa parte dos guerrilheiros já estava de pé.

O comandante Taur Matan Ruak veio até mim. Sorridente, convidou-me para um café. Era a primeira vez que alguém vindo de um país de língua portuguesa entrava no acampamento central das Falintil (Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor Leste). Catorze anos depois que o entrevistei, entre granadas e sacos de arroz, ele viria a ser eleito o terceiro presidente de Timor Leste independente.

Ao acompanhar uma patrulha armada para checagem do terreno e busca por possíveis espiões, vi, do alto de uma montanha, uma verdadeira fortaleza natural. De um lado, uma garganta, passagem obrigatória para quem quisesse entrar ou sair. Postos avançados no alto dela tornavam quase impossível uma invasão inimiga. Do outro, uma série de escarpas de difícil acesso vigiadas por postos fixos.

A ilha vai do nível do mar até os quase 3.000 metros de altitude de seu cume, o Tatamailau, em 40 km de linha reta. Apesar de viverem praticamente cercados de água, os timorenses são um povo mais das montanhas do que do mar. Alguns, contudo, aventuram-se para fora. José Ramos-Horta ajudou a comandar a resistência no exílio, ação que o levou a ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Um mês antes de encontrar Matan Ruak, consegui entrevistá-lo em Lisboa. Com a independência, ele se tornou o segundo presidente eleito em 2007. E, nesta sexta (20), assume o cargo novamente.

Não havia equipamento pesado, nenhum canhão ou bazuca na guerrilha. Só armas ligeiras e granadas. Os mesmos barulhos de fuzis batendo contra o peito, armando e desarmando eram ouvidos o dia inteiro. A principal fonte de material era a apreensão dos indonésios em assaltos rápidos. "Nós roubamos as armas deles, eles roubam as nossas, nós as roubamos de novo e por aí vai", explicou um dos guerrilheiros.

Xanana Gusmão, mesmo preso, era considerado o comandante máximo das Falintil. Chamado por alguns como o Nelson Mandela timorense, ele foi o primeiro presidente eleito após a independência. Algumas semanas depois de deixar o acampamento, entrevistei Gusmão na penitenciária de Cipinang, em Jacarta, capital da Indonésia. Carregava um gravador escondido, uma identidade falsa que a resistência timorense fabricou para me passar por cidadão local e um medo intenso de ser pego.

As três refeições no acampamento ocorriam sob horário rígido. Veado, enguia, macaco –carne de caça, em geral. Arroz, macarrão e pimenta. A guerrilha não passava fome, seja por ajuda dos timorenses ou de organizações internacionais. Diante do meu agradecimento ao ser servido, a reprimenda: "Todos fazem seus afazeres pelo bem de todos. Não é necessário dizer isso aqui".

A construção da fraternidade não é fácil. A resistência da população maubere à anexação, ocorrida em 1975, possibilitou que diferenças que bloqueavam a consolidação da união nacional fossem canalizadas em prol de um objetivo único. Ao mesmo tempo, fortaleceu símbolos de uma identidade timorense, como o catolicismo e a língua portuguesa, que não eram tão relevantes sob o domínio português.

Apesar de episódios de violência política nos últimos 20 anos pós-independência, inclusive com atentados contra Ramos-Horta e Gusmão, a democracia e a liberdade de expressão no Timor são bem maiores do que em outras nações da região. O principal inimigo a ser derrotado ainda é a pobreza —o país depende da exploração de petróleo no mar e da venda de café, e mais de 40% vivem na pobreza.

Guerrilheiros ficaram felizes em encontrar um brasileiro. Acreditavam que torcíamos por sua liberdade e viam nosso país como um primo mais forte. Confesso que sentia vergonha de dizer que a esmagadora maioria de nós nem sabia da existência deles. O Brasil, que praticamente ignorou a ilha nos anos de ocupação, ajudou após a independência, enviando professores e técnicos. Depois, o apoio arrefeceu.

Após um dos mais longos dias da minha vida, capotei numa das camas do acampamento, feita de bambu, erguida a alguns palmos do chão para evitar escorpiões e cobras. Os mosquitos não davam trégua, o que me levou a um pacto: sirvam-se, mas em silêncio. Depois percebi o quão caro foi esse acordo. Na volta ao Brasil, com uma febre que não baixava, ficaria um bom tempo internado com um quadro grave de malária.

Na parede da minha sala, timorenses emoldurados ainda vigiam meu dia a dia, lembrando-me o tempo todo que a liberdade não é uma dádiva, mas uma construção coletiva. E que exércitos podem ser engolidos pela resistência de um povo.

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