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Autoritários confundem popularidade com legitimidade para governar como quiserem, diz Vivanco

Ex-diretor para as Américas da ONG Human Rights Watch afirma que política do líder de El Salvador para combater gangues fragiliza democracia

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Buenos Aires

El Salvador vive dias de violência e tensão desde que a Assembleia Legislativa, controlada pelo líder do país, Nayib Bukele, aprovou, no último dia 27, um regime de exceção por um mês. A medida foi tomada após um enorme episódio de violência, em que 62 homicídios foram cometidos por membros de gangues.

A resposta de Bukele não ficou atrás. O governo divulgou imagens dos presos seminus, obrigados a se manter sentados e próximos uns aos outros, com a ameaça de que sofreriam as consequências do que "seus sócios fizerem lá fora", com comida racionada e "sem ver mais a luz do Sol".

Membros de gangues salvadorenhas em pátio de prisão após campanha do governo para combater violência urbana
Membros de gangues salvadorenhas em pátio de prisão após campanha do governo para combater violência urbana - Divulgação Presidência de El Salvador - 27.mar.22/Reuters

Para José Miguel Vivanco, advogado e ex-diretor para as Américas da ONG Human Rights Watch, que falou à Folha por telefone, Bukele age como um mafioso e coloca em risco a legitimidade do Estado.

Como o senhor vê a escalada autoritária de Nayib Bukele? Cada vez se impõe mais na América Latina a lógica de que a popularidade daquele que chegou ao poder equivale a legitimidade. Os dois fatores passaram a representar a mesma coisa para líderes com alta aprovação, como Bukele [81%, segundo a mais recente pesquisa Mitofsky]. Basta que pesquisas mostrem que o líder é popular para, a partir disso, o governo se sentir com total legitimidade para governar como quiser. E se a imprensa, a oposição ou quem quer que seja questionar uma política, uma decisão, o argumento desse governo para derrubar a crítica será perguntar "quem é você?" e "que credencial tem?" e dizer "porque tenho popularidade".

Assim, o líder afirma representar o sentimento majoritário da população, justificando a legitimidade do que está fazendo. Isso é tremendamente perigoso, porque, se você resolve com argumentos de maiorias ou minorias tudo aquilo que envolve normas democráticas de conduta —como questões de direitos fundamentais e de respeito à separação entre os Poderes—, significa que estamos mal.

A popularidade mal usada, portanto, faz mal à democracia. Sim, porque se essa maioria temporária é o que basta para que um governo decidir ir à guerra, exercer o poder de uma maneira abusiva ou decretar um estado de emergência, começam a ocorrer graves retrocessos. Afinal, a ideia fundamental de um Estado de Direito, que respeite as liberdades públicas, o trabalho e a função dos outros poderes, deve ser a base de um sistema democrático em que os cidadãos tenham seus direitos respeitados.

Não se pode, como num circo romano, perguntar às pessoas "executamos a esse senhor ou lhe perdoamos a vida?", "vamos à guerra ou não?", "expulsamos tais e tais igrejas?", "matamos os homossexuais?", porque esse sistema que coloca a popularidade acima de tudo serve para legitimar abusos extremos.

Governar só com critérios de popularidade rompe as bases de um Estado de Direito, e isso a comunidade internacional deve rejeitar. Porque, depois disso, escala-se a outros abusos, como a falta de transparência, mais violação de direitos básicos, menos debate público livre e perseguição a meios de comunicação. Ou seja: mais caudilhismo e menos democracia. É o que está ocorrendo em El Salvador.

Mas essa popularidade se apoia no fato de que as "maras" [grupos criminosos] são uma ameaça real à segurança dos salvadorenhos, correto? Certamente, o enorme problema da segurança pública de El Salvador é real. As "maras" são hoje superpoderosas. Trata-se de entidades criminosas muito perigosas e que, por meio do medo e da extorsão, submetem importantes parcelas da população. Muitos setores populares em El Salvador estão sob controle desses grupos, que exercem seu poder de maneira brutal, recrutam menores e fazem extorsão de comerciantes. São máfias e precisam ser confrontadas. Qualquer governo tem a obrigação de organizar uma política que esteja dirigida a desmantelar esses grupos.

Portanto, é sedutor o discurso de Bukele, em linhas gerais, aos salvadorenhos. Sim, quando as pessoas veem que há um perigo real, que afeta sua segurança, sentem medo. Então aparece um líder como Bukele, que lhes promete que vai aplicar [as políticas com] mão de ferro. Esse é um discurso atraente.

Mas quando Bukele afirma que não haverá juízes nem outras instituições que vigiem a correta aplicação da lei, ou seja, que alguém inocente não vai ser condenado por ser confundido com alguém da "mara", ele passa a atuar fora da lei. O risco de que se cometam violações aos direitos humanos por parte da força pública, arbitrariedades com pessoas que não têm vinculação com esses grupos, está aberto.

Bukele está confundido como se dá a atuação do Estado? Não sei se confundido ou se faz de propósito. O caso é que, quando ele tenta justificar essas medidas draconianas contra as "maras", por exemplo dizendo que os que estão presos pagarão pelas atrocidades cometidas pelos criminosos que estão fora, está usando a mesma estratégia de um líder mafioso ou narcotraficante. Como atua a máfia? Agarra um sujeito e ameaça sua família, seus parceiros que estão fora. Isso é a atuação de um mafioso, não é a atuação do Estado. Um Estado não atua com vingança, mas aplicando Justiça.

O Estado sempre tem de estar em condições de resguardar, de proteger sua legitimidade frente às máfias. Não pode recorrer às mesmas práticas. O Estado tem o monopólio do uso da força e deve exercê-la para desmantelar máfias e grupos violentos, não para se transformar num deles. Isso não é sustentável e faz com que o Estado perca sua superioridade moral frente aos criminosos.

Como essa situação pode escalar? Cedo ou tarde, o que acontecerá vai ser dar mais gasolina ao conflito e à violência. Com o tempo, grupos que hoje apoiam Bukele por questões econômicas, ao ver que o país passa a sofrer possíveis sanções ou penalidades que afetam seus negócios, irão se afastar dele, o que vai complicar sua estabilidade. E ele não vai mais ter legitimidade como Estado, porque se rebaixou a ser e a atuar como a máfia. O Estado não pode ficar de braços cruzados diante das "maras" de nenhuma maneira. O que o cidadão aspira é que alguém garanta sua segurança, mas a garantia da segurança não pode ser dada por militares e policiais que atuam de maneira similar à das máfias.

Os cidadãos iriam do apoio à desconfiança? Sim. Para que os cidadãos se sintam livres e em condições de cooperar com as autoridades, precisam entender que a autoridade vai valorizar essa colaboração, que não vai tratá-los como suspeitos ou delinquentes, que vai a ter a capacidade de investigar os casos que apresentarem. Nenhum cidadão vai confiar num Estado que trabalhe no olho por olho, dente por dente.

Em menor medida, pode-se dizer que isso vem ocorrendo no México também, com o presidente Andrés Manuel López Obrador desprezando instituições baseado em sua popularidade [64%, segundo recente pesquisa Mitofsky]? Sim, em menor medida. AMLO [como ele é conhecido] é alguém que sente que suas decisões estão baseadas em dois elementos. Primeiro, o de que chegou ao poder com uma avalanche de apoio, e, depois, o de que as pesquisas o mostram ainda como um líder de grande popularidade.

Essa popularidade é o oxigênio que lhe permite subir a um palco e atacar a Corte Suprema, ameaçar e estigmatizar qualquer um como corrupto e chamar um plebiscito para julgar ex-presidentes. Ele faz tudo isso porque sua popularidade lhe dá fortaleza. O exercício do poder que se baseia nos níveis de aprovação, na prática, deixa os líderes cegos, e eles se radicalizam como caudilhos. A partir daí, sentem que o Estado de Direito, as liberdades públicas, os meios de comunicação independentes, a sociedade civil e a comunidade internacional são, na prática, obstáculos, impedimentos que se interpõem entre o povo, representado por ele —por AMLO, no caso—, e a possibilidade de alcançar seus objetivos.

É uma posição messiânica. Ele praticamente acredita ser um enviado de Deus e representante dos bons. Mas a situação do México não é tão grave como a de El Salvador, porque o México tem uma maior fortaleza institucional. Não é uma democracia perfeita, mas tem instituições de controle, Justiça e Congresso independentes. El Salvador não tem.

O mesmo diria de Bolsonaro. Seu período terá sido estressante para a democracia brasileira, que tampouco é perfeita, mas creio que as instituições democráticas —a estrutura federal do Brasil, o trabalho do Supremo Tribunal Federal, os meios de comunicação, a sociedade civil— têm sido suficientemente resilientes. Mostram-se capazes de resistir aos piores embates com um desses governos que chegam ao poder pela via democrática e, logo depois, tentam legitimar suas práticas e políticas recorrendo ao argumento de que, se o povo pede, e eles são maioria, eles então têm licença para governar de maneira arbitrária, como está ocorrendo agora.


Raio-x | José Miguel Vivanco, 61

Ex-diretor da divisão das Américas da ONG Human Rights Watch e especialista em América Latina, trabalhou como advogado da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em 1990, fundou o Centro pela Justiça e Direito Internacional. Nascido no Chile, formou-se em direito pela Universidade do Chile e tem mestrado na mesma área pela Escola de Direito de Harvard.

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