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Caixas para entrega de bebês se multiplicam nos EUA em meio a debate sobre aborto

Apelidada de 'refúgio seguro', política é puxada por movimentos conservadores e ganha peso após decisão da Suprema Corte

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Dana Goldstein
The New York Times

Instalada num quartel de bombeiros em Carmel, no estado de Indiana, a Safe Haven Baby Box (caixa para bebês refúgio seguro) parecia um recipiente para receber livros de biblioteca devolvidos. Estava disponível havia três anos para qualquer pessoa que quisesse abandonar um bebê ali de maneira anônima.

Mas ela nunca havia sido usada –até o início de abril. Quando o alarme disparou, o bombeiro Victor Andres abriu a caixa e, para seu espanto enorme, encontrou ali um recém-nascido envolto em toalhas.

A drop-off box for parents to surrender their newborns at a fire station in Carmel, Ind., July 7, 2022. Safe haven laws, that began as a way to prevent the most extreme cases of child abuse, have become a broader phenomenon, supported especially among the religious right, which heavily promotes adoption as an alternative to abortion. (Kaiti Sullivan/The New York Times)
Caixa para entrega de bebês em quartel de bombeiros na cidade de Carmel, no estado americano de Indiana - Kaiti Sullivan - 7.jul.22/The New York Times

A descoberta chegou ao noticiário local, que elogiou a coragem da mãe e descreveu o ocorrido como "um momento para celebração". Depois, no mesmo mês, Andres tirou outro bebê da caixa, desta vez uma menina recém-nascida. Em maio, um terceiro bebê apareceu. Até a chegada do verão, três outros tinham sido deixados em outros pontos do estado que contam com essas caixas.

Elas fazem parte do movimento do refúgio seguro, há anos estreitamente vinculado ao ativismo antiaborto. O sistema oferece a mães desesperadas uma maneira de entregar seu recém-nascido para adoção de modo anônimo —com isso, segundo seus defensores, evitando machucar, abandonar ou mesmo matar as crianças.

Os refúgios podem ser caixas, que permitem aos pais não falar com ninguém —nem sequer ser vistos quando entregam o bebê. Tradicionalmente, são lugares como hospitais ou quartéis de bombeiros, onde funcionários são treinados para aceitar crianças entregues pessoalmente por mães ou pais em crise.

Todos os 50 estados americanos têm leis de refúgio seguro que visam a proteger contra acusações criminais as mães que entregam seus bebês para adoção. A primeira medida desse tipo, conhecida como a lei Bebê Moisés, foi aprovada no Texas em 1999 depois de várias mulheres terem abandonado recém-nascidos em latas ou caçambas de lixo.

Mas algo que começou com o intuito de prevenir os casos mais extremos de abuso converteu-se num fenômeno mais amplo, apoiado especialmente pela direita religiosa.

Nos últimos cinco anos, mais de 12 estados aprovaram leis permitindo a instalação ou ampliando opções de refúgio seguro. Especialistas em saúde reprodutiva e bem-estar infantil dizem que as entregas de bebês provavelmente vão aumentar após a decisão da Suprema Corte de revogar Roe vs. Wade.

Durante argumentos orais no processo, a juíza da Suprema Corte Amy Coney Barrett sugeriu que as leis de refúgio seguro oferecem uma alternativa ao aborto, permitindo que as mulheres evitam "o fardo de cuidar de filhos". Na decisão tomada pela corte, o juiz Samuel Alito citou as leis de refúgio seguro, descrevendo-as como "um avanço moderno" que tornou desnecessário o direito ao aborto.

Muitos especialistas em adoção e saúde feminina não veem os refúgios seguros como panaceia. Para eles, quando uma mulher entrega seu bebê nesse cenário, isso é um sinal de que ela caiu nas frestas dos sistemas de apoio. Ela pode ter ocultado a gravidez ou ter dado à luz sem atendimento pré-natal. Pode sofrer violência doméstica ou transtorno mental, ser dependente de drogas ou viver em situação de rua.

As próprias adoções também podem ser problemáticas. As mulheres podem não saber que ao entregar seus filhos estão abrindo mão de direitos parentais, e as crianças ficam com pouca informação sobre suas origens. Se uma mãe ou um pai fazem uso de um refúgio seguro, "é porque houve uma crise e o sistema já falhou", diz Ryan Hanlon, presidente do Conselho Nacional de Adoção.

Fortalecendo o movimento

As entregas de bebês a refúgios seguros ainda são raras. A Aliança Nacional de Refúgios Seguros estima que 115 entregas legais ocorreram em 2021. Nos anos recentes houve mais de 100 mil adoções por ano no país e mais de 600 mil abortos. Estudos revelam que a imensa maioria das mulheres a quem um aborto foi negado não se interessa pela possibilidade de adoção e acaba criando seus filhos.

Mas o movimento dos refúgios seguros vem ganhando destaque, em parte devido à ação de Monica Kelsey, fundadora da Safe Haven Baby Boxes, que começou como ativista antiaborto.

Monica Kelsey, founder of Safe Haven Baby Boxes, by one of the drop-off boxes at a fire station in Carmel, Ind., July 7, 2022. Safe haven laws, that began as a way to prevent the most extreme cases of child abuse, have become a broader phenomenon, supported especially among the religious right, which heavily promotes adoption as an alternative to abortion. (Kaiti Sullivan/The New York Times)
Monica Kelsey, fundadora da Safe Haven Baby Boxes - Kaiti Sullivan/The New York Times

Com Kelsey e aliados dela fazendo lobby em todo o país, estados como Indiana, Iowa e Virgínia vêm procurando facilitar a entrega de bebês a refúgios seguros, tornando o processo mais rápido e anônimo, permitindo a entrega de bebês mais velhos ou deixando que os pais que entregam um filho deixem o local sem falar com outro adulto ou compartilhar qualquer histórico médico.

Algumas pessoas que trabalham com crianças deixadas em refúgios seguros estão especialmente preocupadas com as caixas, que hoje já chegam a mais de cem em todo o país. "Será que esse bebê está sendo entregue sem coerção?", pergunta Micah Orliss, diretor da Clínica de Entrega Segura do Hospital Infantil Los Angeles. "Será que essa é uma mãe que está passando por um momento difícil e poderia beneficiar-se de um pouco de tempo e conversa para ajudá-la a tomar sua decisão?"

Para usar uma das caixas criadas por Kelsey, a mãe ou o pai abre uma gaveta metálica e encontra um berço hospitalar com temperatura controlada. Quando o bebê está no berço e a gaveta é fechada, ela se tranca automaticamente; a mãe não pode reabri-la. Um alarme é acionado automaticamente, e os funcionários do local podem acessar o berço.

A caixa também dispara uma ligação para o número de emergências 911. Vinte e um bebês foram deixados em caixas desse tipo desde 2017, e o tempo médio que ele passa na caixa não chega a dois minutos, diz Kelsey.

Ela já arrecadou fundos para erguer dezenas de outdoors anunciando a opção do refúgio seguro. Os anúncios trazem uma foto de um bombeiro bonitão segurando um recém-nascido no colo e incluem o número do telefone direto de emergência da Safe Haven Baby Box.

Kelsey diz que está em contato com legisladores em todo o país que querem instalar as caixas em suas regiões. Ela prevê que, dentro de cinco anos, o sistema estará presente em todos os 50 estados.

Devido ao anonimato, as informações sobre pais que usam os refúgios seguros são limitadas. Mas Micah Orliss faz avaliações psicológicas e de desenvolvimento de cerca de 15 bebês por ano entregues nesses locais. Em muitos casos, ele acompanha as crianças em seus dois primeiros anos de vida. Suas pesquisas revelaram que mais de metade apresenta problemas de saúde ou desenvolvimento, em muitos casos decorrentes de atendimento pré-natal inadequado.

Áreas legais cinzentas

Para algumas mulheres que procuram ajuda, o primeiro ponto de contato é a linha direta de emergência da Safe Haven Baby Box. Quando as mães telefonam, recebem informações sobre onde podem entregar seus filhos legalmente e sobre o processo tradicional de adoção.

As organizações de refúgio seguro dizem que informam as pessoas que a entrega anônima de um bebê é o último recurso e que oferecem informação sobre como manter a criança, incluindo maneiras de conseguir fraldas, dinheiro para o aluguel e berçário temporário. Mas, segundo Kelsey, a entidade não informa as mães, a não ser que elas solicitem a informação, sobre prazos legais para recuperar seu bebê.

Pelo fato de essas entregas serem anônimas, elas geralmente levam a adoções fechadas. Os pais biológicos não podem escolher os pais adotivos, e as crianças adotadas ficam com pouca ou nenhuma informação sobre sua família de origem ou o histórico médico dela.

The Safe Haven drop-off box, as seen from inside the fire station, where a baby was left in April, the first in the three years since the box was installed, in Carmel, Ind., July 7, 2022. Safe haven laws, that began as a way to prevent the most extreme cases of child abuse, have become a broader phenomenon, supported especially among the religious right, which heavily promotes adoption as an alternative to abortion. (Kaiti Sullivan/The New York Times)
Instalações de quartel de bombeiros em Indiana para receber bebês deixados na caixa de entrega - Kaiti Sullivan/The New York Times

Hanlon, do Conselho Nacional de Adoção, aponta para pesquisas que mostram que, a longo prazo, os pais biológicos se sentem mais satisfeitos em abrir mão de seus filhos se mantiverem relação com os adotivos. Nos casos envolvendo um refúgio seguro, se uma mãe muda de ideia, ela precisa provar ao estado que está apta a criar seu filho.

As mães biológicas não são imunes a riscos legais e podem não ser capazes de orientar-se em meio às minúcias da legislação sobre refúgio seguro de diferentes estados americanos, diz Lori Bruce, especialista em ética médica na Universidade Yale.

Muitos estados protegem as mães que entregam filhos contra processos criminais se os bebês estiverem sadios e ilesos. Mas mães em situação de crise grave –por exemplo, que sejam dependentes de drogas ou vítimas de violência doméstica— podem não estar protegidas dessa possibilidade se seus recém-nascidos forem afetados de alguma maneira.

Para Bruce, a chance de que uma mãe traumatizada que acaba de dar à luz consiga procurar leis corretamente no Google é pequena. Com a revogação de Roe vs. Wade, "sabemos que teremos mais bebês abandonados", diz. "Meu medo é que isso signifique que mais promotores vão poder processar mulheres por terem abandonado seus bebês em condições inseguras ou por não obedecerem as leis à risca."

Tradução de Clara Allain

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