Descrição de chapéu The New York Times China

Com repressão contra minorias, Xi reconstrói identidade da China

Líder que caminha para 3º mandato impõe agenda autoritária com concretização de valores enraizados na antiguidade

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Chris Buckley Vivian Wang Joy Dong
Pequim e Taipé | The New York Times

Em vilarejos tibetanos no sudoeste da China, funcionários do Partido Comunista difundem o evangelho de união nacional do líder Xi Jinping: todos os grupos étnicos precisam fundir-se em uma China única e indivisível, com um legado compartilhado que remonta a mais de 5.000 anos.

Milhares de funcionários em Ganzi, na província de Sichuan, colhem informações e distribuem presentes como arroz, óleo e retratos de Xi. O objetivo é martelar a mensagem do líder sobre uma identidade chinesa abrangente, disseminando-a de Xinjiang, no oeste, à ilha de Taiwan, no leste.

Líder da China, Xi Jinping, acena para pessoas de diferentes grupos étnicos durante rara visita a Urumqi, capital da região de Xinjiang - Yan Yan - 13.jul.22/Xinhua

"Também eu vou fazer parte de sua família no futuro", disse Shen Yang, secretário do PC em Ganzi —Kardze, em tibetano—, a uma família, segundo um jornal local.

O impulso nacionalista é cada vez mais fundamental para os esforços de Xi para remodelar o país, que têm consequências de longo alcance para a educação e as políticas sociais. Mensagens de patriotismo fazem parte do kit de ferramentas do partido há muito tempo, mas Xi reforçou esse imperativo, lançando um chamado por uma "comunidade de nacionalidade chinesa" unificada para proteger o país.

No momento em que Xi se prepara para reivindicar um terceiro mandato, o que fará no congresso do partido que começa no domingo (16), ele concretamente se nomeou historiador-chefe do país, redigindo uma história, recontada em museus, publicações e programas de televisão, que retrata sua agenda autoritária e centralizadora como a concretização de valores enraizados na antiguidade.

Segundo sua visão, todos os chineses, independentemente da etnia, estão unidos por vínculos culturais que remontam a uma época anterior aos primeiros imperadores. Fica implícito que quem contestar as prioridades de Xi estará traindo os valores sagrados e atemporais da China.

Num momento em que o nacionalismo ressurge nos Estados Unidos, na Rússia, na Índia e em outros países, a visão de Xi também tem visa vacinar a China contra influências indesejadas, especialmente do Ocidente. Em maio, Xi disse ao Politburo, formado pelos 25 funcionários de mais alto nível do partido, que os ocidentais frequentemente erram quando encaram a China como apenas uma nação-Estado moderna.

"Eles não enxergam a China desde a perspectiva de mais de 5.000 anos de civilização", afirmou, usando uma datação das origens do país frequentemente empregada —e contestada. "Por isso eles têm dificuldade em alcançar uma compreensão real de passado, presente e futuro da China."

Em sua expressão mais extrema, a insistência sobre uma identidade singular levou a acusações de genocídio cultural com base na detenção em massa de uigures e outros grupos muçulmanos em Xinjiang.

Outros esforços de doutrinação estão sendo travados junto a tibetanos, mongóis e muçulmanos da etnia hui. A mensagem de Xi também é endereçada a Hong Kong e Taiwan, cada vez mais avessa às exigências de unificação feitas por Pequim. "A identidade cultural é o tipo mais profundo de identidade", Xi tem dito.

A chave é a unidade

Escavadas na província de Sichuan, as relíquias eram diferentes de qualquer coisa encontrada no país até então. Enormes esculturas de cabeças com olhos esbugalhados em formato tubular. Máscaras de ouro com orelhas pontudas. Uma árvore de bronze de 4 metros de altura.

Uma das descobertas arqueológicas mais espetaculares do país, o sítio de Sanxingdui vem sendo escavado desde a década de 1980, mas atraiu atenção redobrada nos últimos dois anos, após a descoberta de 13 mil artefatos. Muitos que veem as relíquias perguntam: o que esses objetos de aparência sobrenatural têm a ver com a China?

O regime vem promovendo as relíquias de mais de 3.000 anos atrás como provas de que a civilização chinesa da antiguidade era mais diversificada do que muitos supunham, mas ainda assim fundamentalmente coesa.

"Diversidade na unidade. A chave é a unidade", disse o arqueólogo Sun Qingwei, da Universidade de Pequim, à agência estatal Xinhua. "A civilização de Sanxingdui é um capítulo na formação da civilização chinesa e contém muitos fatores culturais, mas em última análise está integrada à civilização chinesa."

Especialistas apontam para semelhanças entre os materiais e técnicas de Sanxingdui e os usados pelos reinos da China central vistos como berço da civilização chinesa.

Museu de Sanxingdui, em Guanghan, exibe importantes descobertas arqueológicas e culturais da China - Wang Xi - 16.mai.22/Xinhua

"Queremos resgatar esses elos um por um", diz Li Haichao, professor de arqueologia na Universidade de Sichuan. "‘Diversidade na unidade’ não é apenas um slogan vazio." Mas outros arqueólogos argumentam que os núcleos habitados antigos não embasam a afirmação moderna de que a China é um Estado unificado que remonta a milênios.

"Não havia nação idealizada antes", afirma Wang Ming-ke, taiwanês que estudou o sítio de Sanxingfui. Segundo ele, as narrativas de origem nacional são sempre construídas pelas autoridades para consolidar poder.

Para Xi, essas questões são carregadas de implicações políticas. Em 2020, ele promoveu uma reunião do Politburo sobre "a arqueologia com características chinesas". Em 2017, polemizou com o ex-presidente dos EUA Donald Trump sobre se a China ou o Egito tinham a civilização mais antiga. "Só a China seguiu adiante como cultura íntegra e ininterrupta", Xi disse a Trump caminhando na Cidade Proibida.

Donald Trump, então presidente dos EUA, e Xi Jinping, líder da China, caminham na residência do republicano em Mar-a-Lago, no estado americano da Flórida - Jim Watson - 7.abr.17/AFP

O regime vem injetando recursos crescentes em pesquisas históricas e arqueológicas. O apoio é acompanhado por pressão para que as descobertas reflitam a narrativa oficial.

Os esforços vão muito além de Sanxingdui. Pequim insiste que livros e exposições sobre o Tibete, Xinjiang e as regiões de fronteira retratem esses locais como partes atemporais da China. Autoridades argumentam que elos genéticos e linguísticos entre tibetanos e chineses da etnia han, grupo étnico dominante no país, revelam que mesmo as montanhas do Tibete estavam vinculadas à civilização chinesa milhares de anos atrás.

"A comunidade nacional chinesa existiu originalmente como um fenômeno natural, e apenas mais tarde nós lhe demos um nome", disse em palestra recente o professor de genética Li Hui, da Universidade Fudan, em Xangai. "Primeiro houve a comunidade, e apenas depois disso cada grupo étnico."

Estranhos em sua própria casa

Gyal Lo ficou cada vez mais preocupado quando essa visão reforçada da nação alcançou as cidades e vilas remotas que ele percorria regularmente. Professor tibetano de pedagogia, ele cruzou a China ocidental por décadas, incentivando administradores, professores e famílias tibetanas a conservar vivo o ensino em sua língua e cultura nativa. Seus esforços foram cada vez mais dificultados nos últimos anos, quando as escolas passaram a dar aulas quase exclusivamente em chinês.

"Uma língua não é feita apenas da gramática. Ela carrega nossa cultura."

Xi acelerou fortemente uma campanha para incutir a língua e cultura chinesa nas minorias étnicas. Em 2020 as autoridades da Mongólia Interior, região no norte da China, detiveram pais que protestaram contra a adoção do currículo escolar exclusivamente em chinês. No ano passado o Ministério da Educação ordenou que todas as crianças de minorias étnicas devem ser ensinadas em mandarim nas pré-escolas.

"Por muito tempo o trabalho étnico de nosso país deu ênfase excessiva às particularidades das minorias étnicas e seu direito à autonomia", escreveu Ma Rong, sociólogo na Universidade de Pequim que há anos defende esforços maiores para integrar as minorias, no jornal estatal Global Times.

Sob Xi o regime vem promovendo funcionários que defendem esse ponto de vista. Neste ano, Pan Yue foi nomeado para comandar a Comissão Nacional de Questões Étnicas. Entre os anos 1950 e 2020, o grupo sempre foi presidido por um representante de uma minoria. Mas Pan e seu antecessor são da etnia han, e ele aderiu com entusiasmo à ideia de uma identidade compartilhada com raízes na antiguidade.

"Historicamente, não faltou diversidade de grupos étnicos e religiões, mas, por mais diversos que sejam esses grupos, com seu destino compartilhado eles devem sempre fundir-se em um só", disse, em discurso no ano passado

Gyal Lo iniciou seu trabalho mais de duas décadas atrás, quando o regime seguia uma política étnica mais leniente. Ele diz que espera que as crianças tibetanas possam primeiro aprender a língua local —na realidade uma grande família de dialetos.

Mas, desde 2016 mais e mais crianças tibetanas de 4 ou 5 anos vêm sendo enviadas a escolas internas para acelerar a imersão na língua chinesa. "Quando voltam para casa aos fins de semana, é como se tivessem se tornado estranhas, hóspedes na própria casa. Em vez de conversar com os pais e ter contato físico com eles, guardam distância."

Lo deixou a China no final de 2020. Ele temia ser alvo de desconfiança política por ser da etnia tibetana e pelo ativismo educacional. Hoje ele pilota sua campanha do Canadá.

Tradução de Clara Allain

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