Líderes autoritários usam Legislativo como base para erosão democrática

Autocratas como Putin, Maduro e Orbán são exemplos em debate que ganha fôlego com eleições no Brasil

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São Paulo

A receita para desmantelar democracias e erguer regimes autoritários tem como um de seus ingredientes principais o controle do Legislativo, que, em alguns casos, pode virar uma espécie de base parlamentar para um autocrata. Na lista, entram também a asfixia da imprensa livre e a cooptação do Judiciário.

A Hungria de Viktor Orbán, a Venezuela de Nicolás Maduro e a Rússia de Vladimir Putin são alguns dos exemplos mais evidentes de locais em que o Parlamento foi cooptado por uma maioria que, em vez de frear ímpetos autoritários do líder, acaba por chancelá-los.

Premiê da Hungria, Viktor Orbán, durante entrevista coletiva com a imprensa internacional em Budapeste, após seu partido, o Fidesz, conquistar novamente maioria legislativa - Attila Kisbenedek - 3.abr.22/AFP

O cenário faz parte do que institutos de pesquisa, como o sueco V-Dem, têm chamado de terceira onda de autocratização no mundo, intensificada na década de 2010. A primeira teria se dado de 1920 a 1940, com o fascismo na Europa, e a segunda, de 1960 a 1980, com as ditaduras na América Latina.

O debate é apontado como fundamental por especialistas às vésperas do segundo turno no Brasil, que decidirá se Jair Bolsonaro (PL) permanece na Presidência ou se o Planalto verá o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) depois de 12 anos.

Os reiterados flertes autoritários de Bolsonaro —combinados com o fato de seu partido, o PL, ter conquistado as maiores bancadas na Câmara e no Senado, reforçando a possibilidade de alianças com o centrão— representam um instrumento perigoso para a ordem democrática, avaliam especialistas.

"A erosão democrática acontece como se fosse por dentro das regras do jogo", diz Mariana Amaral, pesquisadora do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo). "O papel do Parlamento nas autocracias mudou; hoje o processo de aprovação de uma lei respeita os trâmites legais, mas não impede que ela seja autocrática."

Aliado do bolsonarismo, o premiê húngaro, Viktor Orbán, promoveu a instrumentalização do Legislativo em seu país. No cargo desde 2010, o ultranacionalista alçou e sustentou maioria na Assembleia Nacional com seu partido, o Fidesz.

Com isso, logrou a aprovação de leis que usurparam a autonomia universitária, retrocederam nos direitos da população LGBTQIA+ e concentraram poder em suas mãos. Em 2011, conseguiu aprovar uma controversa reforma constitucional, apoiada por sua supermaioria de legisladores, que limou parte da independência do Judiciário.

Na Rússia, Vladimir Putin instrumentaliza sua supermaioria com o Rússia Unida na Duma, a Câmara baixa, para dar verniz legal a suas ações. Com uma reforma constitucional costurada no Legislativo há dois anos, o russo, no poder há mais de duas décadas, viabilizou sua possibilidade de permanência no cargo até 2036.

Mais recentemente, na Guerra da Ucrânia, ele tem levado para votação, sem grandes surpresas, propostas como a de anexação de territórios do país vizinho. Enquanto nas ruas há dissidência —e prisões em massa—, na Duma os membros encenam grande cordialidade e apoio ao líder.

Na vizinhança brasileira, está na Venezuela, alvo recorrente das críticas de Bolsonaro, outro exemplo de cooptação dos Poderes. No final da década de 1990, ao conseguir maioria em uma Assembleia Constituinte eleita para esboçar uma nova Carta Magna, Hugo Chávez anulou temporariamente a função do Congresso.

O cientista político Cláudio Couto, professor da FGV, diz que houve no país uma espécie de "absolutismo eletivo" —representantes alçados pelo voto popular optaram por apoiar medidas autoritárias. O sucessor de Chávez, o ditador Nicolás Maduro, mantém supermaioria na Assembleia Nacional até hoje.

"Quando um presidente ou premiê tem uma maioria legislativa capaz de produzir mudanças institucionais que desequilibram os contrapesos e consegue eliminar, a partir dessa maioria eletiva, a independência do Poder Judiciário, aí é que a coisa desanda de vez", afirma Couto.

A preocupação com o cenário brasileiro subiu de nível diante da proposta encampada por Bolsonaro para ampliação do número de ministros do Supremo Tribunal Federal —se reeleito, o atual presidente poderia indicar mais nomes à corte, prerrogativa que ele já usou para fazer uma espécie de chantagem contra o colegiado. Há amplo questionamento, mas uma das vias para cumprir a ameaça seria por meio de aprovação do Congresso.

Yuko Sato, pesquisadora do V-Dem e da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, afirma que, além da tendência de maior aprovação de projetos nocivos à democracia, o controle do Legislativo por um líder autoritário enfraquece os chamados freios e contrapesos, conceito que se refere ao equilíbrio institucional entre Poderes.

"Talvez um dos problemas mais radicais seja o enfraquecimento da capacidade de impeachment", diz. Alvo de dezenas de pedidos de destituição no Congresso, Bolsonaro saiu ileso. Os textos ficaram engavetados, em parte graças à inação de seu aliado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara e deputado federal reeleito.

Em recente relatório, o Laut descreve Lira como personagem central de uma alteração na dinâmica da Casa. "Ele reduziu o poder de manifestação das minorias parlamentares e da imprensa e promoveu maior centralização de poder com a mudança no regimento interno que evita a obstrução da pauta legislativa", explica Amaral.

Com o novo Congresso desenhado para a próxima legislatura e novas alianças a serem forjadas —o PL de Bolsonaro se tornou a maior bancada, mas o PT de Lula também cresceu— permanece a dúvida sobre como Câmara e Senado atuariam para frear avanços autoritários. Por parte dos especialistas, não há otimismo no cerne das análises.

"Não sei o quanto seria desconfortável para os partidos fisiológicos, do chamado centrão, tornarem-se base legislativa de um autocrata, desde que continuem gozando do acesso ao poder", diz Couto, da FGV.

Para Sato, do V-Dem, a erosão democrática já está instaurada, independentemente do resultado das urnas. "No cenário em que Lula ganhe, provavelmente isso é menos preocupante a longo prazo; já no cenário em que Bolsonaro ganhe, tudo se torna mais preocupante."

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