Americano sobreviveu por oito meses em Kherson, escondido dos russos

Cidade ucraniana foi desocupada pelas forças do Kremlin na semana passada

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Andrew E. Kramer
Kherson (Ucrânia) | The New York Times

Para passar despercebido das patrulhas russas, ele não saía de casa; ficava assistindo a filmes no notebook. Nos dias de sol, andava num pequeno pátio cercado. Com medo de ser visto, espiava cautelosamente por trás das cortinas, vendo os russos se instalando do outro lado da rua.

Ele é o professor de inglês Timothy Morales, americano que passou todos os oito meses da ocupação russa da cidade de Kherson, no sul da Ucrânia, escondido dos militares e da polícia secreta russa, com medo de que sua nacionalidade o convertesse em alvo. Morales só emergiu em público quando o Exército ucraniano libertou a cidade, na semana passada.

Timothy Morales, professor americano que se escondeu em seu apartamento durante a ocupação russa em Kherson, na Ucrânia
Timothy Morales, professor americano que se escondeu em seu apartamento durante a ocupação russa em Kherson, na Ucrânia - Lynsey Addario - 15.nov.22/The New York Times

"Passei por momentos de desespero", diz Morales, na praça central de Kherson, onde hoje caminha livremente com fitas azuis e amarelas —cores nacionais da Ucrânia—, presas ao casaco de lã. "Mas eu sabia que esse dia chegaria em algum momento."

O baque da artilharia disparada em direção à cidade por posições russas na outra margem do rio Dnieper ainda sacode as janelas, e Kherson é uma cidade sombria e escura, sem eletricidade, água ou aquecimento. A maioria de seus habitantes fugiu meses atrás, e quando os russos bateram em retirada levaram tudo de valor que puderam encontrar.

No amanhecer de cada dia, muitos civis remanescentes formam longas filas para receber pão ou encher jarros plásticos de água. Foi apenas na terça (15) que chegaram os primeiros comboios carregados de ajuda humanitária. Os caminhões estacionaram na praça para distribuir pacotes de farinha de trigo, sabão, lenços umedecidos e guloseimas como milkshake instantâneo em pó.

Mas para o ex-professor universitário Morales, 56, o pior já ficara para trás —ele não precisaria mais brincar de gato e rato com os russos. Criado em Banbury, na Inglaterra, Morales viveu em Oklahoma City durante anos, lecionando literatura inglesa. Antes da invasão russa da Ucrânia, em fevereiro, ele abrira uma escola de inglês em Kherson.

Nos caóticos dias iniciais da guerra, enquanto tanques de Moscou combatiam as poucas tropas ucranianas na região, Morales acabou encurralado atrás das linhas russas.

Ele contou que tentou uma vez escapar para o norte por uma rodovia, mas voltou atrás quando viu tanques mais à frente. Conseguiu enviar a filha de 10 anos para um lugar seguro, viajando com a ex-mulher, mas ele próprio não conseguiu sair. "Eu não quis me arriscar a partir com meu passaporte."

Morales não fizera nada de ilegal pelas leis de qualquer país. Mas o Kremlin caracterizou os EUA e seus aliados, que estão armando as tropas ucranianas, como o verdadeiro inimigo na guerra, atribuindo a eles reveses no front. Morales temia que tropas russas o prendessem pelo simples fato de ser americano.

Ele virou sobrevivente e testemunha furtiva do ataque russo, da ocupação brutal e do fracassado esforço russo de assimilar partes da Ucrânia e eliminar qualquer oposição.

Os russos invadiram Kherson no início de março, e pouco depois soldados já patrulhavam as ruas da cidade enquanto agentes do Serviço Federal de Segurança (FSB), a principal agência sucessora da KGB, procuravam integrantes de um movimento guerrilheiro clandestino pró-Ucrânia.

A vida de Morales passou a ser limitada a dois apartamentos –o dele e o da ex-mulher–, além do pátio, um espaço agradável e difícil de enxergar, com cerejeiras e nogueiras. Por dois meses, conta, ele não ousou aventurar-se a ir mais longe que o pátio.

Parentes de sua ex-esposa, que é ucraniana, traziam-lhe comida, e às vezes ele fazia compras numa mercearia onde conhecia a balconista –uma adolescente com posições pró-ucranianas. As saídas para fazer compras constituíam exceções em sua vida, de modo geral enclausurada.

Houve um momento em que ele escapou por pouco de uma enrascada. Em setembro, havia ido ao pátio e viu soldados russos apontando fuzis através da grade de arame de um portão. Correu de volta para dentro da casa e trancou a porta. Pouco depois um grupo de soldados chegou para fazer uma busca. Uma vizinha gritou do outro lado da porta que ele não tinha escolha senão abrir a porta. Morales a abriu e deu de cara com um agente do FSB.

Ele fala russo, mas não bem o suficiente para se passar por ucraniano. Disse ao agente que era irlandês, chamava-se Timothy Joseph, dava aulas de inglês e perdera o passaporte. A polícia secreta foi embora. A vizinha, uma mulher mais velha, ajudou-o no engodo, dizendo aos policiais que não tinham motivos para desconfiar.

"Aquilo mudou minha perspectiva", conta. "Antes eu era cuidadoso. Depois, fiquei paranoico." Ele diz que o interrogatório foi o pior momento que passou e que acha que só escapou porque os agentes "não eram as pessoas mais espertas do mundo".

De seu esconderijo, ele conseguiu voltar a dar aulas de inglês online, usando a conexão de internet de um vizinho para comunicar-se com alunos em outras partes do país e no exterior. "Aquilo manteve minha sanidade mental", afirma, ainda que não conseguisse receber pelas aulas.

Morales ficou preocupado quando viu um russo, possivelmente um administrador civil do governo de ocupação, levar sua família para viver num apartamento abandonado por ucranianos num prédio do outro lado da rua, aumentando o risco de ele próprio ser descoberto.

Mas com o passar do tempo observou algo que também estava ficando óbvio para outros moradores: que o Exército russo estava desmoronando. A disciplina estava se perdendo, os soldados pareciam mais maltrapilhos e era mais comum vê-los conduzindo carros locais roubados que veículos militares. "Com o passar do tempo eles foram ficando mais desleixados e confusos."

No último mês da ocupação russa, Morales observou que soldados que haviam roubado automóveis caros, como BMWs ou Mercedes, foram levando esses veículos de balsa para longe de Kherson. O desaparecimento deu esperança.

Na semana antes da libertação, a eletricidade acabou, e Morales ficou sem acesso às notícias. Na sexta-feira ele viu um carro passar na rua com uma bandeira ucraniana. "Eu soube então que os russos tinham ido embora."

Ele participou da celebração na praça central da cidade, saudando os soldados que entraram em Kherson, em jipes e picapes, sem encontrar oposição. Mas por mais que esteja feliz com a libertação da cidade, pretende ir embora agora. "Preciso me distanciar um pouco do que aconteceu aqui."

Tradução de Clara Allain

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