Na contramão dos EUA, Benin amplia direito ao aborto para reduzir procedimentos ilegais

Segundo ministra, mortalidade decorrente de métodos clandestinos era 'inaceitavelmente alta'

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Elian Peltier
Cotonou (Benin) | The New York Times

Quando parlamentares do Benin, na África ocidental, se reuniram no ano passado para debater a possibilidade de legalização do aborto, ouviram um depoimento chocante da ministra de Questões Sociais do país sobre coisas que viu durante os anos em que trabalhou como ginecologista.

Véronique Tognifode relatou que ela e seus pares lutaram para salvar a vida de mulheres que haviam tentado interromper a gravidez ingerindo comprimidos dúbios ou água sanitária, inserindo objetos cortantes no corpo ou fazendo abortos ilegais com pessoas não qualificadas, conhecidas localmente como "mecânicas".

Homem e mulheres em Benin durante treinamento conduzido por associação que promove o planejamento familiar
Homem e mulheres em Benin durante treinamento conduzido por associação que promove o planejamento familiar - Carmen Abd Ali /The New York Times

A mortalidade decorrente dos abortos clandestinos era inaceitavelmente alta, disse a ministra: uma a cada cinco mortes maternas no Benin era resultante desses procedimentos —mais que o dobro da média no continente africano, região mais perigosa do mundo para interromper uma gravidez.

"Meninas e mulheres jovens fazem abortos de uma maneira ou outra, e os métodos que empregam são impensáveis", disse Tognifode, uma de três ginecologistas que ocupam altos cargos no governo do Benin. "Não podemos aceitar o que vemos nos hospitais."

Um ano depois desse depoimento, o país de 12 milhões de habitantes, em sua maioria cristãos e muçulmanos, tornou-se um dos poucos africanos onde há amplo acesso ao aborto.

Em outubro de 2021 os legisladores aprovaram a descriminalização da interrupção da gravidez sob a maioria das circunstâncias, autorizando sua realização quando a gestação provavelmente causará "sofrimento material, educacional, profissional ou moral" à mulher. Até então isso só era permitido em casos de estupro, incesto, anormalidades fetais ou risco à vida da mãe.

Diferentemente de vários países latino-americanos, onde o aborto só foi autorizado recentemente em resposta a movimentos de base feministas, a lei no Benin foi alterada após anos de um trabalho de lobby discreto feito por médicos e ativistas. Segundo políticos, a medida também teve o apoio do presidente.

Passado um ano da promulgação da lei, algumas clínicas têm recebido mais mulheres buscando fazer abortos, mas menos pacientes precisando de tratamento devido a procedimentos malfeitos.

A iniciativa do Benin seguiu o rumo oposto ao dos Estados Unidos, onde estados vêm reforçando restrições e a Suprema Corte reverteu o entendimento de Roe vs. Wade, de 1973.

Ela também contraria o que ocorre na maior parte do continente. Na África subsaariana, nove em cada dez mulheres ainda vivem em países com leis que restringem o aborto, segundo o Guttmacher Institute.

O Benin é um dos poucos onde o aborto é permitido na maioria dos casos. Os outros são Cabo Verde, Moçambique, África do Sul e Tunísia. Mas outras nações debatem a questão. Em junho, parlamentares da Libéria discutiram um projeto de lei que legalizaria o aborto na maioria das circunstâncias, mas o resultado ainda é incerto. Enquanto isso, o governo de Serra Leoa, que tem um dos maiores índices mundiais de mortalidade materna, prometeu que vai descriminalizar a prática.

Os defensores dos direitos de aborto na África receiam que o quadro americano possa prejudicar a liberalização. "O Benin hoje reconhece algo que os EUA negam, mas é impossível ignorar o impacto do fim de Roe vs Wade sobre a África", diz Bilguissou Baldé, diretor para a África francófona da ONG Ipas, que promove o direito ao aborto.

Mesmo assim, muitas mulheres no Benin hoje se sentem mais livres para procurar o procedimento. As autoridades não divulgaram cifras oficiais.

"As mulheres nos dizem diretamente ‘quero fazer um aborto’", afirma Serge Kitihoun, diretor de serviços médicos da filial local da International Planned Parenthood Federation (federação internacional de planejamento familiar). "Alguns anos atrás, isso teria sido impensável."

O cirurgião e ginecologista Simon Séto em sua sala médica na cidade de Abomey-Calavi, perto de Cotonou
O cirurgião e ginecologista Simon Séto em sua sala médica na cidade de Abomey-Calavi, perto de Cotonou - Carmen Abd Ali/The New York Times

A votação do projeto de lei coroou um trabalho de lobby de anos. Já em 2018 o ministro da Saúde e também ginecologista e obstetra Benjamin Hounkpatin teria dito a ativistas que estava interessado em facilitar o acesso ao aborto, segundo Baldé.

Duas vezes no ano passado, legisladores se reuniram num hotel nos arredores de Cotonou e ouviram apresentações de Tognifode e de outros ginecologistas e enfermeiras sobre abortos clandestinos.

Centenas de mulheres no Benin ficam inférteis todos os anos e pelo menos 200 morrem em consequência de abortos malfeitos –os números reais podem ser duas ou três vezes maiores. Estudos revelam que a restrição do acesso tem pouco impacto sobre o número de mulheres que buscam o procedimento. Em vez disso, ela coloca a vida das mulheres em risco.

"Quantas vezes ainda teremos que atender mulheres com o intestino saindo pelo útero?", disse Tognifode.

O parlamentar Orden Alladatin disse que imagens tão atrozes foram mostradas que ele foi persuadido a votar pelo projeto de lei.

Bispos locais –um quarto da população é católica— tentaram fazer oposição ao texto, mas só foram informados sobre a medida na véspera da votação, segundo o secretário-geral da conferência nacional de bispos, Eric Okpeitcha. "Tentamos falar com parlamentares para pedir que votassem contra, mas já era tarde demais", diz.

"Isso não faz parte de nossa cultura." Ele argumenta que os critérios da nova lei são muito vagos e permissivos. "Sofrimento material –quem pode definir o que é isso?"

Não foram feitos referendos ou pesquisas para avaliar a opinião pública. Alguns legisladores, incluindo o presidente da Assembleia Nacional, se opuseram fortemente à medida.

Mulher é atendida em clínica médica em Cotonou, no Benin
Mulher é atendida em clínica médica em Cotonou, no Benin - Carmen Abd Ali/The New York Times

Kitihoun, da Planned Parenthood, conta que fez lobby até o último minuto, chegando a seguir parlamentares até o banheiro da Assembleia antes da votação.

Após horas de debate, o texto foi aprovado por unanimidade; legisladores que se opunham ou haviam deixado o recinto ou alegaram ter mudado de opinião. A contagem dos votos não foi divulgada.

O presidente Patrice Talon, 64, empresário que fez fortuna na indústria do algodão, se mobilizou pessoalmente pela lei, segundo Tognifode e Hounkpatin. Muitos viram o apoio dele como sendo coerente com seu histórico de aprovar medidas para aumentar os direitos das mulheres: aumentando as sentenças de culpados de agressão sexual, criminalizando o contato sexual entre professores universitários e seus alunos, autorizando mulheres a dar seu sobrenome a seus filhos.

Mas críticos dizem que os legisladores não tiveram muitas opções senão seguir a linha do presidente, eleito em 2016 e que, segundo analistas, vem ficando cada vez mais autocrático desde então, encarcerando adversários políticos e sufocando a liberdade de imprensa.

Se a sociedade local está preparada para o aborto legal é outra questão. Nas últimas décadas o índice de natalidade no país caiu para 4,7 nascimentos por mulher, mas o Benin ainda é religiosamente conservador.

Tradução de Clara Allain 

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