Analistas erraram sobre invasão da Ucrânia, mas acertaram consequências

Após um ano, especialistas relembram posições e destacam reforço da multipolaridade e impacto energético

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São Paulo

Há pouco mais de um ano, a Casa Branca completava um mês afirmando que a Rússia invadiria a Ucrânia a qualquer momento —à época um cenário que deixou muitos analistas cautelosos com o diagnóstico.

A estratégia parecia ser mascarar contestações a Joe Biden e arregimentar recursos e aliados num cenário de tensão com Rússia e China, algo que não mudou tanto um ano após o início do conflito.

O presidente americano, Joe Biden, em entrevista coletiva na sede da Otan, a aliança militar ocidental, em Bruxelas, na Bélgica
O presidente americano, Joe Biden, em entrevista coletiva na sede da Otan, a aliança militar ocidental, em Bruxelas, na Bélgica - Zheng Huansong - 25.mar.22/Xinhua

Dois acadêmicos que falaram à Folha poucos dias antes da invasão da Ucrânia agora reveem posições. Reconhecem certo equívoco nas previsões do que ocorreria, mas muito também se concretizou.

Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), via chance remota de que uma guerra explodiria e apostava na continuidade do conflito retórico, espécie de guerra narrativa. "Imaginávamos que não chegaria a esse ponto e que não se prolongaria tanto."

A posição era semelhante à de Lucas Leite, professor da Faap e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA. À época, ele apontou para as posições comedidas de atores importantes, como a Alemanha, para sugerir que os bastidores seriam a arena daquela disputa.

"[A invasão] surpreendeu. Os custos seriam altos para Rússia e para os países ocidentais que dependem do gás natural russo e hoje estão sofrendo com a troca da matriz energética."

Por outro lado, as consequências de um eventual conflito foram adiantadas pelos especialistas. A começar pela questão energética: a importação de gás da Rússia pela União Europeia passou de 35,7% em fevereiro de 2022 para 12,9% em novembro, em um movimento feito às pressas por países como a Alemanha, que buscou nações do Oriente Médio para evitar escassez do combustível durante o inverno.

Ambos reforçaram que a transformação da ordem geopolítica para um cenário multipolar deveria ser acelerada com um eventual conflito, em oposição à hegemonia americana, embora os EUA fossem se manter como potência fundamental, principalmente do ponto de vista militar. "Vemos uma mudança estrutural nesse sentido que já acontece e tende a se escancarar", disse Leite à época.

Antes da guerra, Pecequilo também avaliou que a estratégia retórica americana naquele momento era contraproducente tanto internamente quanto em termos de política externa. "Quanto mais Biden pressionar a Rússia, maior será a reação russa e chinesa", disse à época, ressaltando que as tensões na fronteira ucraniana faziam parte de um panorama geopolítico maior que já envolvia Pequim.

Em fevereiro de 2022, a professora avaliou que a Casa Branca buscava mascarar crises internas de Biden, que completava um ano de mandato sob pressão, após o fracasso da retirada americana do Afeganistão.

Hoje, ela reforça que, embora o bloco ocidental tenha se consolidado sob a liderança de Washington, as contestações ao envio de ajuda financeira e militar à Ucrânia crescem dentro e fora dos EUA. Segundo o instituto Pew Research Center, cresceu a fatia da população do país que discorda do montante de assistência enviado a Kiev: de 7% em março de 2022 para 26% em janeiro de 2023.

A falta de apoio bipartidário pode pesar na estratégia de Biden de aumentar gradualmente o poder de fogo ucraniano e elevar os custos políticos de seguir com essa estratégia. Diferentemente do cenário no começo da guerra, quando democratas controlavam o Congresso, hoje a Câmara tem maioria republicana.

"O governo tem dominado a narrativa, ao menos no Ocidente. Mas internamente há discussões sobre por que o dinheiro está indo para fora, não para resolver crises internas, como o aumento da inflação e o desemprego alto nas classes mais baixas. O custo político será cada vez maior", diz Pecequilo.

O discurso oficial da Casa Branca antes do início da guerra também foi avaliado por Leite como uma forma de recriar a aura do velho antagonista americano sublinhando os movimentos russos como ações que impediam o diálogo. Hoje, apesar do fracasso em isolar a Rússia, ao menos da forma como se esperava, com sanções e ajuda a Kiev, o bloco ocidental mantém a unidade a despeito de divergências.

"Vemos que esses grupos e essas aproximações sempre existiram e acabam se conformando quando há a delimitação de uma ameaça, de um inimigo comum", diz Leite. "Esses países têm assumido custos cada vez maiores e dito que não vão abandonar a Ucrânia, porque a Rússia pode melhorar sua posição na balança de poder se Kiev perder. O custo é maior de não fazer nada do que de mandar armas."

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