Cautela da Alemanha resume dilema europeu com Guerra da Ucrânia

Dos US$ 150 bilhões enviados em ajuda a Kiev, US$ 14 bilhões vieram de Berlim; premiê Olaf Scholz vira meme online

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São Paulo

"Scholzar (verbo): comunicar boas intenções apenas para usar/achar/inventar qualquer razão imaginável parar atrasá-las e/ou evitar que aconteçam."

O neologismo ("scholzing" no original em inglês), meme de internet criado na Ucrânia e tornado célebre ao ser retuitado pelo historiador britânico Thimoty Garton Ash, incorretamente tratado pelo premiê Olaf Scholz como o autor da brincadeira, resume bem a percepção mundial acerca da cautela alemã durante a Guerra da Ucrânia.

O premiê alemão, Olaf Scholz, discursa em frente a um tanque Leopard-2 em base militar em Ostenholz
O premiê alemão, Olaf Scholz, discursa em frente a um Leopard-2 em base militar em Ostenholz - Ronny Hartmann - 17.out.2022/AFP

Quando Ash o postou e recebeu mais de 1 milhão de visualizações, Scholz estava sob intensa pressão para que liberasse o emprego de tanques de guerra alemães Leopard-2 pela Ucrânia —os seus e os de terceiros, dado que o modelo é o mais usado na Europa, com 2.300 unidades.

Acabou topando, com meros 14 tanques de seu próprio arsenal, e cobrando que outros façam o mesmo. Foi visto, novamente, como pouco. Afinal de contas, foi Scholz que proferiu um discurso histórico três dias depois da invasão, que completou um ano nesta sexta (24), falando que o mundo passava por uma "Zeitenwende", ou "virada de época" em alemão.

Anunciou um fundo extra de defesa de US$ 107 bilhões para 2022, praticamente triplicando seu orçamento militar, e prometeu encerrar a dependência energética russa estabelecida por seus antecessores Gerhard Schröder e Angela Merkel —o primeiro se viu exposto como lobista de Putin, e a última, incensada como estadista, tem escapado de críticas mais duras.

"A Alemanha passou por uma enorme mudança em sua segurança energética, embora tanto ela quanto a Europa estejam longe de ser independentes da Rússia. Mas a história sobre a modernização da defesa permanece a mesma", diz o analista americano Ryan Bridges, da consultoria Geopolitical Futures.

A falta de resultados no campo militar derrubou no começo deste ano a ministra da Defesa Christine Lembrecht. Ela deu lugar ao falante Boris Pistorius, que levou à frente o anúncio dos tanques, mas só.

A posição de Scholz, defendida pelo próprio na Conferência de Segurança de Munique no fim de semana passado, reflete a das economias mais desenvolvidas da União Europeia —a beligerância estimulada por EUA encontra mais eco nos países do Leste Europeu, como a Polônia, e no "ex-europeu" Reino Unido.

Caiu a praticamente zero a compra de gás russo pelos alemães, em um processo que já preocupa especialistas pelo custo: o país gastou bilhões de euros para encher seus tanques para enfrentar um inverno que se mostrou bem mais quente do que o previsto e colocou de pé uma usina flutuante para reconverter gás liquefeito importado do Oriente Médio. Outras duas estão a caminho.

Apesar das queixas em Kiev, onde Berlim é vista como leniente com Moscou, a Alemanha é o segundo país mais comprometido com ajuda aos ucranianos.

Segundo o mais recente levantamento do Instituto para a Economia Mundial de Kiel, divulgado na última terça (21), até o dia 15 de janeiro 41 doadores enviaram US$ 153,4 bilhões para a Ucrânia em ajuda militar, financeira e humanitária.

Maior potência mundial, os EUA lideram com folga o ranking, com US$ 78,2 bilhões doados, o grosso em armamento (US$ 47,3 bi, mais de dez vezes o orçamento militar de Kiev em 2021). Berlim vem a seguir, bem atrás, com US$ 14,2 bilhões —cerca da metade na forma de repasses à UE que acabaram em Kiev.

Em proporção do PIB, os países se equivalem, doando 0,4%, embora 0,2% do esforço alemão já estivesse nos cofres europeus. A UE, como instituição multinacional, é o segundo maior apoiador da Ucrânia, com US$ 58,4 bilhões enviados, a maior parte em ajuda financeira.

Aqui a rixa europeia se acentua ao analisar o caso da França, cujo presidente, Emmanuel Macron, busca sempre o protagonismo ao falar sobre a guerra. Paris gastou 0,07% de seu PIB, ou US$ 1,78 bilhão, de recursos orçamentários enviando ajuda (US$ 700 milhões em armas), somando na conta final mais 0,2% do PIB (US$ 6,39 bilhões) que teria de pagar à UE de todo modo.

Nominalmente, a soma coloca os franceses como quartos maiores doadores individuais. Londres vem em terceiro, empregando US$ 8,9 bilhões sozinha. Isso tudo qualifica um pouco o debate, mantendo a razão com os críticos que veem na Ucrânia uma guerra por procuração entre EUA e Putin.

"Os americanos estabelecem o ritmo. A hesitação europeia no primeiro ano da guerra é um fenômeno notável, especialmente porque os recursos financeiros podem ser rapidamente mobilizados. Isso se demonstra no grande montante de fundos que a UE mobilizou para amortecer o choque dos preços de energia", escreveu Christoph Trebesch, coordenador do Monitor de Apoio à Ucrânia do instituto.

No mais, a realidade da divergência de interesses europeus se mostra quando se analisa o impacto da guerra no orçamento dos países mais pobres do leste, que temem diretamente a ameaça russa.

Lideram o ranking em porcentagem do PIB a Estônia (1,1% próprios e 0,2% via UE), a Letônia (1%, mais 0,2%), Polônia (0,6%, mais 0,3%) e Lituânia (0,7%, mais 0,2%).

Para o analista Bridges, "os sonhos de uma acomodação com a Rússia acabaram, e a Alemanha está mais consciente do risco de depender de Estados autoritários". Ao mesmo tempo, renova seus laços com a China, aliada de Putin. "A Alemanha está apostando contra o 'Zeitenwende'."

Por ora, a população parece apoiar Scholz, apesar das dificuldades políticas internas. Até sua "virada de época" colou: a Sociedade da Língua Alemã a elegeu palavra do ano de 2022.

Isso dito, a realidade mostra que o verbo "scholzar" ainda tem uma ressonância maior fora das fronteiras alemãs, justa ou injustamente, em especial quando se vê os números da França, rival histórica e sócia da Alemanha na construção da UE. Concordância apenas no temor reverencial que os americanos têm perdido da Rússia, cortesia de quatro décadas sob a mira nuclear da União Soviética.

Erramos: o texto foi alterado

A ajuda militar enviada pela França para a Ucrânia na guerra soma US$ 700 milhões, não US$ 700 bilhões, como afirmava versão anterior deste texto.

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