Rotina de refugiados da Ucrânia em Milão reflete incerteza no 1º ano da guerra

Região da Lombardia foi uma das que mais receberam imigrantes, e ONGs começam a temer apatia diante do tema

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Milão

Em 1º de março de 2022, Svitlana Tkatchuk, o marido, o filho pequeno e uma bebê de sete meses deixaram a casa onde moravam, a 15 km do centro de Kiev, na Ucrânia. De carro, seguiram para o oeste do país, com a intenção de se afastar das áreas afetadas pela invasão russa, ocorrida cinco dias antes.

Junto com a mãe e uma irmã de Svitlana, a família foi até Zakarpattia, na fronteira com a Hungria. Ali, ficaram por uma semana, até que Svitlana, 34, em pesquisas e conversas em inglês com desconhecidos numa rede social, soube que voluntárias italianas ofereciam ajuda, incluindo a possibilidade de hospedagem. Despediu-se do marido, impedido de deixar o país, e continuou a viagem de carro.

Ucranianos fazem protesto na praça do Scala, em Milão, na Itália, contra apresentação de uma ópera russa
Ucranianos fazem protesto na praça do Scala, em Milão, na Itália, contra apresentação de uma ópera russa - Piero Cruciatti - 7.dez.22/AFP

"Tinha muito medo. Estava indo para um lugar desconhecido e sem saber quando voltaria", conta a ucraniana. "Entendi que tinha começado uma guerra, mas achava que era algo que duraria um mês", diz ela, que trabalhava como economista na Ucrânia, mas naquele momento estava de licença-maternidade.

Em 10 de março, após cruzar a Eslovênia, entrou na Itália por Trieste e chegou a Milão, onde mora há quase um ano. A família foi acomodada, com a ajuda das voluntárias, em um apartamento emprestado, e Svitlana matriculou o filho Dmitro, 5, numa escola pública. Passados seis meses, ela, a irmã, a mãe e as crianças precisaram se mudar para outro local, também emprestado. Veio, então, outra fase de adaptação.

"Quando a guerra começou, Ieva tinha sete meses. Foi na Itália que ela começou a andar. Em toda a sua vida, ela já morou mais tempo aqui do que na Ucrânia", afirma Svitlana, que, em setembro, planeja colocar a filha na escola infantil, e o mais velho, na primeira série. "Preciso pensar no futuro, no que deveria fazer, se ficar ou voltar. Mas os dias passam, e não sei nem mesmo onde vamos morar."

O marido, engenheiro, passou a atuar no conserto de equipamento bélico. A família, que se fala sempre por videochamadas, reencontrou-se uma única vez, em setembro, na fronteira da Ucrânia com a Hungria.

Svitlana é uma das 170 mil pessoas que fugiram para a Itália após a invasão russa e que vivem no país com visto de proteção temporária. Segundo o Acnur, agência da ONU para refugiados, mais de 8 milhões de moradores na Ucrânia entraram na Europa, dos quais 4,8 milhões estão registrados com vistos do tipo.

A Itália é o quarto país que mais recebeu esses refugiados, atrás de Polônia (1,5 milhão), Alemanha (881 mil) e República Tcheca (485 mil). Além da relativa proximidade do norte do país com a área do conflito, a existência de uma comunidade consolidada de ucranianos, que cresceu entre 2001 e 2011, contribuiu.

Antes da guerra, a Itália era o segundo país da União Europeia com mais cidadãos ucranianos que possuíam visto de residência, com 230 mil, atrás da Polônia, então com 651 mil. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, a comunidade ucraniana era composta essencialmente por mulheres (79%), muitas das quais trabalhadoras em serviços domésticos, como cuidadoras de crianças e idosos.

A nova onda de imigrantes mantém a predominância feminina, com perfis semelhantes ao de Svitlana. Dos quase 170 mil que passaram a viver na Itália, 108 mil são adultos, dos quais 84% são mulheres. A maior fatia de refugiadas (29 mil) tem idades entre 30 e 39 anos.

A região italiana que mais recebeu fugitivos da guerra foi a Lombardia, onde fica Milão, com 30,4 mil. O volume chamou a atenção de ONGs que já atuavam na cidade com imigrantes ou pessoas em situação de pobreza. Alberto Sinigallia, presidente da Fundação Progetto Arca, que trabalha há quase 30 anos com moradores de rua, conta que, 24 horas após a invasão, percebeu a iminente fuga em massa.

"No domingo seguinte à invasão, fiz a primeira viagem com furgões que funcionam como cozinhas móveis. Dirigimos 32 horas para a Romênia, onde oferecemos comida e chá quente às pessoas que ficavam no frio à espera de atravessar a fronteira da Ucrânia", lembra ele. A ONG acabou recebendo um espaço da Prefeitura de Siret, na Romênia, onde, mais tarde, pôde acomodar refugiados durante a noite.

A ucraniana Svitlana Tkatchuk, que vive em Milão após a guerra assolar seu país
A ucraniana Svitlana Tkatchuk, que vive em Milão após a guerra assolar seu país - Michele Oliveira/Folhapress

Dois meses depois de ir todo fim de semana à região, Sinigallia passou a concentrar esforços no acolhimento de quem chegava a Milão. Um posto foi aberto ao lado da estação central de trens, onde refugiados podiam receber orientações de voluntários que falam ucraniano. "Passaram ali cerca de 10 mil pessoas. Destes, 90% foram acolhidos em casas de famílias, e o restante, em centros coletivos."

Entidades com histórico de atuação com refugiados notaram a diferença com que os ucranianos foram recebidos até em países em que o discurso anti-imigrante tem força. A explicação passa pela proximidade geográfica com a guerra e pelo fato de os imigrantes terem perfis físicos e religiosos semelhantes.

"A medida do envolvimento e da emoção que isso provoca nas pessoas varia conforme o grau da cobertura midiática e da proximidade", afirma Luciano Gualzetti, presidente da Cáritas Ambrosiana.

"Sendo uma guerra vizinha e que todo dia tinha imagem de refugiados e de bombardeamento, vimos uma sensibilidade muito maior do que com outras emergências com afegãos, paquistaneses e africanos."

Após quase um ano, surgiram outros problemas. Sinigallia conta que muitas dessas famílias têm dificuldades em continuar hospedando os refugiados, mesmo no caso de parentes ou conhecidos. "Pensava-se que a guerra duraria um ou dois meses. Ninguém imaginava que fosse durar mais de um ano. E agora essas pessoas precisam de lugares até que possam voltar à Ucrânia, o que muitos desejam."

Svitlana é uma das que querem voltar à terra natal, mas só após o fim da guerra. Sem trabalhar, recebeu o auxílio do governo italiano, sob diretiva da União Europeia, de € 600 (R$ 3.300) por mês, calculado pelo número de filhos. O valor, no entanto, só pode ser utilizado por, no máximo, três meses.

Como outras famílias, ela encontra apoio no Centro de Acolhimento a Refugiados Ucranianos Don Orione, ligado a uma paróquia. Ali, são oferecidas aulas de italiano, roupas, alimentos e assistência psicológica.

Quando a Folha esteve no local, em meados de fevereiro, voluntários e refugiados comemoravam o aniversário de uma jovem de 20 anos que chegou sozinha da Ucrânia e estava na casa de uma viúva.

Diante da falta de perspectiva para o fim da guerra e com outras emergências batendo à porta da Europa, como a alta do custo de vida e o terremoto na Turquia, há o temor de que a crise dos refugiados ucranianos possa cair na mesma apatia que permeia outros conflitos.

"Difícil ficar indiferente a uma guerra tão próxima, mas certamente há o risco de as pessoas se acostumarem com isso ou de dizerem que não conseguem mais ajudar", avalia Gualzetti.

Svitlana, apesar de ansiar que a guerra acabe o quanto antes, com, afirma ela, a soberania da Ucrânia sobre todo o seu território, está disposta a esperar pela vitória. "Estou pronta para suportar as inconveniências. Combateremos até o fim, por cada centímetro, para vencer os invasores da nossa terra."

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