Em duas semanas, a morte de Mahsa Amini, estopim para uma das maiores ondas de protestos antirregime da história recente do Irã, completará três meses. Nesse período, os atos ganharam corpo pelo país e fora dele, na mesma medida em que cresceu a repressão a eles, incluindo a detenção de manifestantes. A ONU investiga o caso.
Para a liderança da república teocrática, os protestos são menos uma resposta à morte da jovem curda e mais uma insatisfação popular contra sanções internacionais, diz o porta-voz da chancelaria iraniana, Naser Kanani. A visão destoa da versão de ativistas que vivem no país.
Kanani afirma que manifestações são permitidas no Irã, mas que a ação daqueles que chama de vândalos não será aceita. A repressão policial, de acordo com o diplomata, seria um reflexo disso: "Violência gera violência".
O porta-voz falou à Folha por email. As perguntas foram enviadas na segunda semana de novembro à embaixada do Irã no Brasil, e as respostas, encaminhadas na segunda-feira (28). Nesse meio-tempo, o país condenou ao menos seis manifestantes à pena de morte.
Um general do alto escalão das Forças Armadas também afirmou que ao menos 300 pessoas morreram nos protestos, entre civis e policiais —ONGs de direitos humanos dizem que a cifra passa de 450. E, no Qatar, a seleção iraniana na Copa viu seu dia a dia ser pautado pelos atos, do hino antes dos jogos a perguntas em entrevistas coletivas.
O porta-voz da chancelaria também falou sobre a expectativa das relações Irã-Brasil no governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e a possibilidade de tirar do papel o acordo nuclear.
Como avaliam os efeitos da morte de Mahsa Amini? Como um incidente amargo que feriu a alma de todos os iranianos. Mas, além desse fator, reivindicações legítimas de alguns setores são causadas principalmente pelas cruéis sanções dos EUA e do Ocidente.
Protestos pacíficos são um direito legal e assegurado no Irã, mas alguns oportunistas usarem esse evento lamentável como pretexto para criar caos, violência, destruição de propriedade pública, atacar pessoas e forças de segurança é diferente de protesto pacífico.
Países europeus e a mídia estrangeira usam esse incidente enquanto se calam sobre operações terroristas —como o recente ataque em Shah Cheragh [a ação reivindicada pelo Estado Islâmico foi noticiada quando ocorreu, em 26 de outubro]. Transformam seus países em uma base segura para eles.
Como o regime pretende lidar com o que se mostra uma insatisfação popular com o establishment e as leis? O direito de manifestações pacíficas é reconhecido nas leis do Irã. Protestos pacíficos são realizados anualmente sem problemas. Desde que manifestantes não recorram a medidas violentas, eles serão protegidos.
O uso de armas, causando desordem pública e terror, os levará a arcar com consequências legais. Os encarregados de manter a ordem pública na sociedade estão cientes desse direito e foram treinados.
A guerra elaborada pelos EUA e sua disseminação de notícias falsas por meio de perfis falsos em redes sociais e canais de língua persa não são novidade. O interessante é que nunca se menciona a morte de mais de 50 policiais [a imprensa internacional e a Folha citam os balanços do regime de vítimas entre agentes das forças de segurança] e a destruição do patrimônio público por vândalos.
Cidadãos e ONGs denunciam que a polícia tem agredido e atirado em manifestantes. Como avaliam essa questão? O martírio de agentes e o ferimento de mais de 8.000 deles é prova da gravidade da atuação de criminosos. Ninguém aceita a perda de vidas de civis. No entanto, alguns encorajam deliberadamente a violência para aumentar a pressão política, criando violência recíproca. Violência gera violência.
Em recente entrevista à Folha, o relator especial da ONU sobre direitos humanos no Irã disse que suas tentativas de diálogo com o regime foram frustradas. Por que não permitir que a ONU visite o país e ajude? Consideramos injustificável a nomeação de um relator com resoluções que são baseadas em objetivos políticos de alguns países. Infelizmente, o senhor Javaid Rehman tem tomado atitudes equivocadas. Ele passou a atacar o sistema político do Irã, algo que vai na contramão de sua função. Do ponto de vista do Irã, ele é um relator fracassado, com uma agenda política.
O chanceler iraniano reconheceu o envio de drones para a Rússia meses antes da Guerra da Ucrânia. O país pretende seguir vendendo drones para a Rússia? O Irã não enviou nenhuma arma à Rússia para ser usada na guerra contra a Ucrânia. A cooperação de defesa entre Irã e Rússia existe há muito tempo, e o envio de um número limitado de drones antes da atual guerra estava nesse pacote. O Irã se opõe veementemente ao envio de armas às partes em conflito, o que conduz ao prolongamento da guerra.
Há chances de um acordo nuclear se materializar atualmente? O Irã nunca se retirou do acordo. Foram os EUA que se retiraram de maneira ilegal e impuseram sanções unilaterais. As medidas compensatórias nucleares em resposta à retirada dos EUA são baseadas no direito.
Acreditamos que o processo de negociação é possível se houver vontade política americana. Esperamos que as negociações tenham resultados econômicos tangíveis e que isso seja garantido de modo que o que ocorreu na era de Donald Trump não volte a acontecer.
Binyamin Netanyahu deve voltar a ser premiê em Israel com uma coalizão com componente radical e partidos da ultradireita. O que se pode esperar? O Irã nunca reconheceu o regime sionista. E, como não há nenhuma relação com as forças de ocupação, para o Irã não importa se têm políticas de direita, esquerda ou centro.
E sobre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Brasil? Esperamos que haja desenvolvimento entre ambos os países em todos os campos durante o mandato do senhor Lula. Irã e Brasil possuem amplas capacidades comerciais, que devem ser exploradas para garantir os interesses das duas nações. Todas as capacidades do Irã serão usadas para atingir esse objetivo.
Em 2010, ao lado do então premiê turco, Recep Erdogan, hoje presidente, Lula tentou reviver propostas de um acordo de troca de combustível com o Irã. Acha que o governo dele pode assumir algum papel em negociações do Irã? O Brasil é um país importante na arena internacional. As negociações de Viena limitaram-se aos países-membros do acordo, e não houve discussão sobre o papel de outros países. Mas, claro, tínhamos e ainda temos negociações com demais países em campo da cooperação nuclear e em assuntos relacionados à energia nuclear. Isso sempre esteve e está em nossa agenda.
Observa-se um aumento nas compras de alimentos do Brasil pelo Irã, em parte por causa da Guerra da Ucrânia. O que pode ser melhorado na relação comercial? O Brasil é um bom parceiro econômico e sempre conseguimos melhorar nossa segurança alimentar com a ajuda do Brasil. Além de comercializar produtos agrícolas, podemos trabalhar na diversificação das relações e expandi-las para áreas como mineração, energia, compra de aviões, ônibus, caminhões e máquinas agrícolas do Brasil. Por outro lado, podemos aumentar as exportações de fertilizantes, petróleo e derivados e frutas.
Raio-x | Nasser Kanani
Diplomata de carreira, ocupou diferentes cargos na chancelaria e na embaixada do Irã na Jordânia. É porta-voz do Ministério das Relações Exteriores desde junho de 2022.
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