Número de médicos estrangeiros em Portugal bate recorde, mas muitos ficam pelo caminho

Apesar da alta demanda, processo de revalidação para profissionais de países fora da União Europeia é longo e árduo

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Alexandra Campos
Lisboa | Público

Marcelo Sampaio é um psiquiatra brasileiro que atua como especialista há poucos meses num hospital privado de Lisboa, depois de ter chegado a Portugal no início da pandemia, em março de 2020. "Sou um em cem. Tive muita sorte", enfatiza o psiquiatra, que, antes de ver reconhecida a sua especialidade pela Ordem dos Médicos no ano passado, trabalhou como generalista "na linha da frente da Covid-19" e fez de tudo um pouco em urgências de hospitais. "É o destino do médico estrangeiro", lamenta.

Sampaio é um dos 4.503 clínicos estrangeiros que estavam inscritos na Ordem dos Médicos no final do ano passado. É o maior número de que se tem registro.

Nos últimos anos, continuam a chegar a Portugal médicos de vários países da União Europeia, com Espanha e Itália à frente, mas são, sobretudo, os brasileiros que contribuem para a escalada da estatística.

Equipe médica atende paciente com Covid-19 no hospital de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Portugal, em 2021 - Violeta Santos Moura 22.fev.2021/Reuters

Basta ver que, entre 2018 e 2022, dos 844 estrangeiros que conseguiram obter a desejada carteira profissional, metade (420) era formada por brasileiros, o segundo grupo mais numeroso em Portugal, à frente dos espanhóis, que têm reconhecimento automático ao abrigo da legislação comunitária.

Mas esses números podem ser enganadores. Há muitos médicos de países como o Brasil, que tentam vir trabalhar em Portugal, mas não conseguem. É difícil quantificar com rigor quantos serão porque o processo é árduo e demorado, e uma parte significativa vai ficando pelo caminho —as reprovações acontecem nas sucessivas provas exigidas para o reconhecimento do curso de medicina.

De acordo com Sampaio, "atualmente há uma corrida" de estrangeiros, sobretudo brasileiros, interessados em trabalhar em Portugal, mas as etapas que têm de percorrer fazem com que muitos acabem por desistir, principalmente os mais experientes.

O psiquiatra, que cobra pela consultoria prestada a colegas interessados em emigrar para Portugal, confessa que até tem demovido desta aventura muitos conterrâneos mais jovens, por ser "mais fácil verem reconhecido o diploma noutros países".

"Digo-lhes: 'Não vale a pena virem para cá.' Para um recém-formado, Espanha é muito melhor."

Sampaio, que está agora empenhado em criar uma associação de médicos brasileiros em Portugal, escapou a este escrutínio porque revalidou o diploma ainda antes de imigrar, em 2017. "Sou de outro tempo, em que o tratado de amizade Portugal-Brasil ainda era respeitado."

Lembrando que o processo de reconhecimento dos cursos não depende da Ordem dos Médicos, uma vez que está nas mãos de escolas médicas portuguesas, o ex-presidente da entidade Miguel Guimarães observa que é nesta fase inicial que reside "o grande problema, uma vez que a maior parte dos candidatos chumba".

O escrutínio é rigoroso. Os candidatos começam o processo inscrevendo-se no site da Direção Geral do Ensino Superior e escolhem, entre as oito faculdades de medicina, aquela em que pretendem revalidar o diploma, e onde um júri começa por analisar a carga horária do plano de estudos do seu curso e a semelhança com os cursos portugueses, e dá ou não luz verde para o processo prosseguir.

a foto mostra a fachada da faculdade de medicina de lisboa, um prédio moderno com muitas janelas
A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa é uma instituição pública universitária dedicada ao ensino e investigação na área da medicina, ciências da nutrição e ciências da saúde - Catarina Zimbarra/FMUL

Seguem-se quatro provas de avaliação de conhecimentos linguísticos, acadêmicos e clínicos. Para os que não são oriundos de um país de língua oficial portuguesa, há, primeiro, uma prova de comunicação básica de português. Depois, todos têm de passar numa prova escrita com 120 perguntas que versam sobre as principais áreas da medicina.

Os dados dos dois últimos exames escritos, liberados ao Público pelo Conselho das Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), permitem perceber que, de fato, uma parte substancial fica pelo caminho logo nesta etapa: na prova escrita de 2022, dos 520 médicos que compareceram, pouco mais de um terço conseguiu passar; na última, em janeiro, foram aprovados pouco mais de metade (322) dos 593 candidatos.

Depois desse exame, os médicos têm de se submeter a uma nova prova, esta prática e clínica, em que avaliam um paciente e elaboram um relatório. Por fim, têm ainda de apresentar um trabalho de mestrado ou equivalente. Não foi possível apurar a taxa de aprovação nestas duas etapas, tendo o CEMP indicado apenas que o exame escrito se tem revelado a etapa "mais crítica".

Todo este crivo não é demasiado apertado? "Os crivos em medicina são sempre muito apertados", diz a presidente do CEMP, Helena Canhão, frisando que o padrão de exigência é semelhante ao que é imposto aos médicos portugueses.

"Os portugueses, depois de terminarem o curso, fazem um ano de internato. Depois, fazem um exame para entrar na especialidade, que é difícil. E todos os anos têm exames e são avaliados. A vida de médico é assim. Estamos a tratar da vida das outras pessoas, e errar em medicina é algo muito grave", justifica.

Venezuelano foi trabalhar na Espanha

Para alguns médicos venezuelanos em Portugal, passar nesta primeira barreira tem se revelado muito complicado. Raquel Pinheiro Pinto, 45, anestesista que chegou a Portugal em outubro de 2019, enfrentou sem dificuldade a prova de português, mas foi reprovada duas vezes consecutivas no exame escrito, que não poderá repetir. "São 120 perguntas, de pediatria, ginecologia, obstetrícia, saúde pública e outras áreas, a que temos de responder em três horas."

Para um profissional com vários anos de experiência e que já se formou há anos, é como voltar à estaca zero. Com dois filhos pequenos e obrigada a arranjar um emprego para poder sobreviver em Portugal ("trabalho 10 horas por dia num hotel"), ela não conseguiu "arranjar tempo nem concentração para estudar". "Sou anestesista desde 2007 e só fazia anestesia, só lia artigos da especialidade."

No início deste ano, Raquel começou a tratar da documentação para tentar ir para Espanha, seguindo o exemplo de um médico amigo, também venezuelano, cirurgião. Christian de Abreu, 39, fugiu da crise que assolou a Venezuela em maio de 2019 e ainda passou seis meses na Itália, país que facilitou a entrada de médicos estrangeiros durante a pandemia de Covid-19.

Acreditando que conseguiria homologar o seu diploma facilmente, voltou para Portugal, onde ainda trabalhou durante um ano na construção civil para se sustentar. Inscreveu-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, diz ter pago € 900 (R$ 5.059) pela papelada e pelo processo, mas nem chegou a comparecer no exame porque estava doente no dia da prova.

Na Espanha, onde se inscreveu mais tarde, em dezembro de 2019, o processo também foi demorado, mas recentemente acabou conseguindo o reconhecimento do diploma, sem ter de fazer exames. "A Espanha facilita, é o Ministério das Universidades que trata de tudo, e o processo é menos burocrático e muito menos caro", explica.

Christian começou a trabalhar em novembro passado na "área sanitária de Pontevedra", na Galiza, onde faz atendimentos de emergência em vários centros de saúde, que ali estão abertos também durante a noite. Continua a viver em Braga, de onde se desloca para o trabalho apenas alguns dias por semana, uma vez que assegura turnos num total de 160 horas por mês. Mas "a falta de médicos em Espanha é brutal", o que o leva a fazer muitas horas extras. É um esforço que compensa, diz. "No mês passado, trabalhei 190 horas e ganhei € 6.600 (R$ 37.105)."

Em Portugal, a maioria dos médicos estrangeiros que estão inscritos na Ordem não tem a especialidade reconhecida, de modo que não podem candidatar-se aos concursos para preenchimento de vagas em centros de saúde e hospitais que ficam, frequentemente, desertos. Acabam por ter que trabalhar de acordo com a demanda, como clínicos gerais, sobretudo nas urgências hospitalares mais desfalcadas.

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