Descrição de chapéu The New York Times

Partido do premiê da Índia altera livros didáticos para remover parte da história

Mudanças suprimem muçulmanos e etapas da vida de Gandhi para valorizar nacionalismo hindu

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Suhasini Raj
Nova Déli | The New York Times

Nesta semana, no início do novo ano letivo na Índia, alunos de milhares de salas de aula receberam novos livros didáticos de história e política nos quais detalhes importantes do passado nacional foram diluídos ou extirpados. São informações que o partido governista do primeiro-ministro Narendra Modi considera que não convêm à sua visão nacionalista hindu para o país.

Os cortes abrangem referências às ligações entre o extremismo hindu e o assassinato de Gandhi, a fundação secular da Índia e os distúrbios de 2002 em Gujarat, em que centenas de muçulmanos foram mortos em dias de violência discriminada numa época em que Modi era o líder máximo do estado. Capítulos sobre a história do Império Mugal, abrangendo centenas de anos de domínio muçulmano, foram cortados parcial ou completamente.

Homem indiano grisalho de barba, camisa branca e colete cinza atrá de placa que diz Índia
O premiê da Índia, Narendra Modi - Dita Alangkara - 15.nov.22/Reuters

Os trechos cortados dos textos didáticos de história e política para a 12ª série abrangem, entre outros tópicos, a busca de Gandhi pela união entre hindus e muçulmanos e como isso provocou extremistas hindus a ponto de tentarem assassiná-lo; o repúdio do qual ele era alvo, principalmente entre os queriam que a Índia fosse um país só de hindus; e o perigo envolvido na instrumentalização de sentimentos religiosos para propósitos políticos, que representa uma ameaça à política democrática.

As alterações estavam sendo discutidas desde o ano passado antes de serem formalizadas no currículo. Elas seguem outros esforços do BJP, o partido de Modi, de apagar os traços muçulmanos fortes na história e na política da Índia, incluindo frequentes alterações de nomenclatura de ruas e cidades, trocando nomes muçulmanos por hindus.

Os líderes do partido governista também procuram minimizar os argumentos dos fundadores da Índia independente de que a diversidade do país só poderia sobreviver sob um guarda-chuva secular, cooptando o legado de muitos líderes seculares em seu esforço para remodelar a Índia e convertê-la em um país onde os hindus vêm em primeiro lugar.

Com essa campanha divisiva, os discursos de ódio contra muçulmanos têm proliferado, locais sagrados têm sido disputados agressivamente, e turbas de hindus têm linchado muçulmanos suspeitos de abater ou mesmo apenas transportar vacas, animais considerados sagrados no hinduísmo.

A interferência política na educação não é um fato novo na democracia indiana. Sucessivos governos federais e estaduais têm procurado usar a educação em vantagem própria, seja para fomentar uma agenda ideológica, como suspender um programa de educação sexual em um estado governado pelo BJP, seja para autopromoção, incluindo um retrato altamente elogioso de um adversário político do partido de Modi numa parte de um livro didático que trata de um movimento de agricultores.

Dinesh Prasad Saklani, diretor do Conselho Nacional de Pesquisa e Formação Educacional, organização autônoma sob o Ministério da Educação encarregada do conteúdo dos livros didáticos, diz que as alterações foram feitas para reduzir a carga de estudos dos alunos após a pandemia. Capítulos foram removidos para evitar repetição, e informações importantes foram condensadas, alega Saklani, "o que não afetará de maneira alguma o conhecimento dos alunos".

Mesmo a remoção de palavras isoladas, como aquela que identificava o assassino de Gandhi, Nathuram Godse, como sendo um hindu de casta alta, teria sido realizada unicamente com essa finalidade.

"Quando a carga de conteúdos está sendo reduzida em tempos de tanto trauma, por que isso seria tão importante? Afinal, por acaso todos os brâmanes são assassinos?", questiona Saklani, em referência a Godse. Os brâmanes ocupam o topo da hierarquia de castas e formam um grande bloco de eleitores do partido de Modi.

Saklani disse que a organização educacional não tem vínculo algum com o BJP ou com o RSS, um grupo poderoso de direita que é a principal fonte de apoio ideológico do partido político de Modi. Nas redes sociais, membros de entidades ligadas ao RSS saudaram as alterações.

"Um esforço foi feito para estampar na cabeça das crianças, dos estudantes, o signo da escravidão, e não as tradições das quais a Índia tem orgulho", disse Vinod Kumar Bansal, porta-voz de um dos grupos, o Vishwa Hindu Parishad. Segundo ele, os opositores "ensinaram a todos, glorificando a história do período escravista. Antes tarde que nunca. Este é um esforço para apagar todos esses capítulos."

O currículo prescrito pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Formação Educacional é usado pelo Conselho Central de Ensino Secundário, ao qual são filiadas mais de 20 mil escolas públicas e particulares em todo o país. Seus livros didáticos também são amplamente usados como material de estudos para exames de admissão a empregos altamente cobiçados no funcionalismo público.

Críticos argumentam que as alterações nos livros didáticos podem transmitir aos estudantes uma visão deturpada da história indiana. Narendra Modi se liga ao legado de Gandhi, ao mesmo tempo em que outros líderes do establishment governante rejeitam os princípios de Gandhi. Godse virou figura reverenciada por alguns grupos, e um deputado do BJP chegou a descrevê-lo como patriota.

"O assassinato de Gandhi é um momento fundador de nossa história, e todos ainda estamos sofrendo", diz Prabhu Mohapatra, professor de história indiana moderna na Universidade de Déli para quem as alterações mudam a narrativa histórica. "Como vamos conhecer os detalhes e o contexto exato em que Gandhi foi morto, se não começarmos pela escola?"

A alteração do currículo foi noticiada extensamente na imprensa indiana quando os livros novos foram disponibilizados oficialmente esta semana. Um jornal, The Indian Express, que noticiou o lançamento gradual das alterações no ano passado, publicou um editorial mordaz. "As revisões recentes abrem o governo à acusação de que não apenas ele quer escapar de fatos impalatáveis como quer garantir que os estudantes não interajam criticamente com a realidade social e política."

Tradução de Clara Allain 

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