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PL das Fake News: A redução de alcance que Google testou no Canadá e pode repetir no Brasil

Empresa limitou acesso a notícias para mais de 1 milhão de canadenses diante de risco de pagar por links jornalísticos

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Mariana Sanches
Washington | BBC News Brasil

Quando o governo de Justin Trudeau, o premiê progressista do Canadá, criou o Ato de Notícias Online, em junho de 2022, a divulgada intenção do projeto era dar a veículos do país uma remuneração toda vez que alguém clicasse em um link jornalístico indicado num buscador, como o Google, ou em redes sociais.

Mas, após a aprovação da medida pela Câmara dos Deputados, em dezembro de 2022, o que aconteceu na internet canadense foi exatamente o oposto do que legisladores e o governo Trudeau esperavam.

Logo do Google em Nova York
Logo do Google em Nova York - Andrew Kelly - 17.nov.21/Reuters

Embora o texto legislativo ainda dependa de chancela do Senado para entrar em vigor, em fevereiro deste ano o Google se antecipou e implementou por cinco semanas um teste que limitou o acesso a notícias online de 3,3% dos usuários do buscador da big tech no Canadá. Na prática, o conteúdo jornalístico desapareceu dos resultados de busca de mais de um milhão de pessoas no país ao longo desse período.

A revelação deste teste, no fim de fevereiro, enfureceu Trudeau e levantou a questão se, forçadas a pagar por conteúdos que recomendam, as big techs poderiam simplesmente deixar de linká-las ou apresentá-las nas páginas dos usuários. "Surpreende-me que o Google tenha decidido que era preferível impedir os canadenses de lerem notícias a pagar jornalistas pelo trabalho que fazem", disse ele sobre o caso.

O Google nega que tenha feito o experimento para interromper o acesso do público a notícias como forma de ameaçar o governo, protestar contra o novo projeto ou burlar potenciais novos custos a seu negócio. Segundo a empresa, tratava-se de um estudo para explorar as prováveis novas condições de mercado.

"Testes orientados a hipóteses, do tipo AB, são padrão no espaço tecnológico. No Google, fazemos mais de 11,5 mil testes por ano em razão de qualquer pequena mudança ou novo recurso. Você precisa testar para ver como seus usuários reagem e como isso afeta seus produtos", afirmou à BBC News Brasil Jennifer Crider, chefe global de Comunicações do Google.

"Neste caso, fizemos testes porque o projeto de lei mudará radicalmente o cenário de links de notícias no país. E não queríamos presumir que seríamos capazes de linkar [notícias] da forma que fazíamos antes. O projeto de lei pode afetar nossa capacidade de fornecer nossos produtos e serviços aos canadenses. Como qualquer empresa que enfrenta incerteza sobre algo, esperamos obter informações desses testes para avaliar respostas e analisar como essas mudanças afetariam os canadenses e nossos produtos."

O Google, porém, não informa o resultado do teste canadense nem de nenhum outro e afirma não saber se estará passível a algum tipo de punição devido à iniciativa no Canadá. Crider disse à BBC News Brasil que a empresa "reconhece que os legisladores do país ficaram surpresos".

No Canadá, no Brasil

A discussão que levou executivos da empresa a testemunhar no Congresso canadense na semana passada desembarca no Brasil graças ao PL2630, mais conhecido como PL das Fake News. O texto tem dividido o Congresso e a sociedade ao tentar estabelecer novas regras para o ambiente online brasileiro.

Embora o projeto brasileiro hoje em tramitação na Câmara seja muito mais amplo que o Ato de Notícias Online e preveja, por exemplo, punições severas às plataformas que não derrubem conteúdos falsos ou criminosos mesmo sem ordem judicial para tal, ele também estabelece que as big techs deverão pagar por links jornalísticos acessados a partir de suas plataformas —como o projeto de lei canadense.

Após ter sido aprovado para tramitação em regime de urgência, o PL das Fake News passou a enfrentar fortes resistências de big techs, influenciadores e youtubers, além de políticos, principalmente da direita.

Na semana passada, acabou retirada da pauta de votação diante do alto risco de que fosse derrubada no plenário. Pesou especialmente a articulação do Google, que chegou a postar um link em sua página inicial cujo título era: "PL das Fake News pode piorar sua internet". O presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira (PP-AL), acusou o Google e as demais empresas de tecnologia de recorrerem a instrumentos de impulsionamento ou de limite do alcance de postagens para desvirtuar a discussão contra o projeto de lei.

"Usaram seus instrumentos para impulsionar, atrapalhar ou cercear movimentações da outra parte, convergindo todos os meios que detêm, com algoritmos que possuem influência nos estados. A pressão foi horrível, desumana e mentirosa —o pior é isso", disse Lira, favorável à aprovação do PL, à GloboNews.

"As big techs ultrapassaram todos os limites da prudência. Se a gente puder comparar, é como se tivessem impedido o funcionamento de um poder", afirmou Lira. Os deputados favoráveis ao PL cogitam desmembrar a proposta em diferentes projetos para tentar aumentar sua viabilidade. As plataformas negam que tenham atuado para direcionar o debate público brasileiro.

Diante da similaridade das pautas e das reações dos parlamentares, a BBC News Brasil procurou o Google para entender se a plataforma poderia adotar no Brasil medida semelhante à adotada no Canadá: limitar acesso a notícias a seus usuários. "Uma das coisas que devemos observar sempre que um projeto de lei é aprovado é se precisaríamos fazer alterações em nossos produtos. [Então a resposta é] sim, talvez. Essa [limitação de acesso a conteúdo jornalístico] é uma mudança potencial, mas pode haver outras mudanças que precisam ser feitas dependendo de como será o resultado final do projeto de lei. É muito difícil dizer de forma hipotética", afirmou à BBC News Brasil Jennifer Crider, chefe global de Comunicações do Google.

A conta é de quem?

Na justificativa para o projeto de lei canadense, o autor da medida, o ministro Pablo Rodriguez, responsável pela pasta de Herança Canadense (que abarca cultura, mídia, esportes), afirmou que, desde 2008, o Canadá havia perdido 450 veículos de imprensa e que, nos 12 anos anteriores à criação do projeto de lei, rádios, revistas, canais de televisão e jornais perderam quase US$ 3,7 bilhões (R$ 18 bilhões).

Em contrapartida, apenas em 2020 anúncios online geraram US$ 7,1 bilhões (R$ 35 bilhões) em receitas —e 80% destes recursos se concentraram em apenas duas empresas.

O governo canadense, portanto, passou a identificar em buscadores e mídias sociais uma atividade predatória em relação aos veículos de comunicação. Enquanto os primeiros recebiam a audiência e os recursos de propaganda, os segundos definhavam tentando produzir conteúdo a ser explorado pelos gigantes da internet. A partir desse diagnóstico, o Canadá resolveu por meio da lei criar possibilidade de barganha para que a imprensa pudesse negociar melhores compensações das big techs.

"No final das contas, tudo o que pedimos aos gigantes da tecnologia é compensar os jornalistas quando eles usam seu trabalho. Os canadenses precisam ter acesso a notícias de qualidade baseadas em fatos nos níveis local e nacional, e é por isso que criamos o Ato de Notícias Online. Os gigantes da tecnologia precisam ser mais transparentes e responsáveis perante os canadenses", afirmou à BBC News Brasil Laura Scaffidi, secretário de comunicação do ministro Rodriguez.

A lei canadense não é inédita. Ela se inspira na experiência da Austrália, que, em 2021, tornou-se o primeiro país a forçar Google e Facebook a remunerar o trabalho jornalístico, por meio de negociações diretas com as publicações ou com a intermediação de um árbitro que definiria o montante a ser pago.

No final de 2022, o Departamento do Tesouro australiano publicou um relatório no qual classificou a aplicação da lei como "bem-sucedida" por ter gerado ao menos 30 acordos de remuneração à imprensa local e nacional. "Ao menos alguns desses acordos permitiram que as empresas contratassem mais jornalistas e fizessem outros investimentos valiosos para auxiliar suas operações", afirmou o documento.

No Brasil, a proposta atual estabelece que terá direito a remuneração empresas em funcionamento há ao menos 2 anos, mesmo se individual (um só jornalista), que "produzam conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada e profissional e que mantenham endereço físico e editor responsável no Brasil".

Caso o texto seja aprovado, a negociação poderá ser feita de forma individual, entre veículos e empresas, ou de forma coletiva. A arbitragem estatal, porém, pode acontecer em caso de inviabilidade dos diálogos.

"Como já ocorre em outros países, a remuneração da atividade jornalística por plataformas de tecnologia pode ser um elemento decisivo para a formação de um ecossistema jornalístico amplo, diverso e saudável, capaz de se opor à difusão da desinformação e dos discursos de ódio. Tal ecossistema é essencial para a manutenção da própria democracia", diz nota da Associação Nacional de Jornais (ANJ).

Mas os detalhes sobre quanto e como as big techs teriam que pagar seria estabelecido apenas por uma regulamentação posterior, tanto no Brasil como no Canadá. A incerteza em torno do que a nova lei significa para os cofres das big techs é apenas um dos aspectos criticados pelas plataformas, que mencionam ainda a falta de definições e critérios claros sobre o que seria "conteúdo jornalístico".

"Colocar preços em links quebra a internet como a conhecemos hoje, um espaço aberto, no qual você faz uma busca livre e a partir daí decide para onde ir. O que somos é apenas um mecanismo para que as pessoas cheguem aonde querem ir. As analogias são todas meio ruins, mas é como se o taxista tivesse que pagar ao restaurante para te levar até lá. Mensalmente, enviamos 3,6 milhões de links que remetem aos veículos canadenses, o que equivale a US$ 250 milhões em valores para eles", argumenta Crider.

As big techs ainda argumentam que o modelo de pagamentos por link pioraria a qualidade jornalística em si nos países em que é adotado, já que as publicações privilegiariam títulos sensacionalistas, grande profusão de links com materiais incompletos e "clickbaits" apenas para maximizar seus ganhos. O atraso de uma definição sobre a lei tanto no Brasil quanto no Canadá interessa às big techs, que defendem mais discussão sobre os temas e trabalham por soluções alternativas que lhe pareçam mais favoráveis.

Em vez do caso australiano, o Google defende que os dois países adotem o que Taiwan fez. Em março, a empresa anunciou um fundo de quase US$ 10 milhões ao longo dos próximos três anos para incentivar a competição entre os veículos taiwaneses e desenvolvê-los. Em meio a uma pressão crescente no Brasil e no mundo para que as plataformas compensem veículos jornalísticos, cujas receitas declinam a passos largos, a estratégia da empresa na ilha asiática tem mostrado mais chances de atrair simpatia do público e dos governos do que a limitação de acesso a notícias testada no Canadá.

O próprio Google estima que as receitas de publicidade para meios de comunicação tradicionais caíram 70% de 2003 a 2020, mas afirma que não é o causador do problema, mas parte da solução.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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