Descrição de chapéu The New York Times

Universidade da Irlanda muda nome de biblioteca que homenageava filósofo escravocrata

George Berkeley, intelectual do século 18, foi dono de escravizados e escreveu panfletos em defesa da escravidão

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Ed O’Loughlin
Dublin | The New York Times

O Trinity College Dublin decidiu buscar um novo nome para sua biblioteca principal após descobrir que o filósofo do século 18 homenageado pela instituição, George Berkeley, foi dono de escravizados em Rhode Island nos tempos coloniais e escreveu panfletos em defesa da escravidão.

Membro da universidade e ex-bibliotecário da instituição, Berkeley é visto por acadêmicos como um dos pensadores mais influentes do início do período moderno. Alguns estudiosos consideram que suas ideias filosóficas e científicas sobre a percepção e a realidade teriam sido precursoras do trabalho de Albert Einstein.

Biblioteca no Trinity College Dublin, na Irlanda - Liu Xiaoming - 20.abr.23/Xinhua

Mas, no mês passado, o conselho de direção do Trinity College, a mais antiga universidade da Irlanda, anunciou que votou por "desnomear" a biblioteca, após meses de pesquisas e consultas de um grupo criado para rever legados problemáticos. As recomendações foram baseadas em uma análise de documentos históricos que estão em domínio público e mostram que, enquanto viveu em Rhode Island, de 1729 a 1732, Berkeley comprou várias pessoas escravizadas para trabalhar numa fazenda que administrou.

O filósofo já era um intelectual destacado quando viajou à América com planos de usar rendimentos da fazenda e doações para abrir uma escola em Bermudas que pegaria crianças indígenas –se necessário, à força— e as converteria ao cristianismo.

Mas seus planos não chegaram a se concretizar, e Berkeley doou sua fazenda e seus escravos à Universidade Yale antes de retornar à Grã-Bretanha e seguir para a Irlanda, onde acabou se tornando o bispo de Cloyne, da Igreja Anglicana.

A reitora do Trinity College, Linda Doyle, disse que, embora o nome do filósofo esteja sendo retirado da biblioteca, seu legado intelectual permanece intacto. Ela destacou que Berkeley continua a ser reconhecido globalmente como um dos pensadores mais brilhantes a ter emergido da Irlanda e que suas teorias filosóficas e científicas continuarão a ser ensinadas na universidade.

"A imensa contribuição de George Berkeley ao pensamento filosófico não está em dúvida", disse Doyle em comunicado. "Mas ficou claro também que ele foi proprietário de pessoas escravizadas e teórico da escravidão e da discriminação racial, o que está em conflito claro com os valores fundamentais da universidade."

A biblioteca não é a única instituição educativa a ter recebido o nome do acadêmico.

A Universidade da Califórnia Berkeley também deve seu nome ao filósofo. Segundo a Sociedade Histórica Berkeley, os provedores da universidade, então privada, decidiram dar seu nome à instituição em 1866 pelo fervor missionário do filósofo e por um poema que ele escreveu:

Para o oeste, o império segue seu caminho;
Os quatro primeiros atos já passaram,
Um quinto encerrará o drama com o dia:
O filho mais nobre do tempo é o último.

Alguns anos atrás, a universidade renomeou dois de seus edifícios dedicados a antigos docentes cujos nomes foram vinculados ao racismo. Mas a hipótese de a própria universidade mudar de nome não foi discutida seriamente.

"Reconhecemos que os fundadores da universidade optaram por dar à sua nova cidade e a seu campus o nome de um indivíduo cujas ideias não merecem ser honradas ou celebradas", disse um porta-voz da instituição, Dan Mogulof. Mas hoje, um século e meio mais tarde, " ‘Berkeley’ encarna e representa valores e perspectivas muito diferentes", disse ele.

Na Irlanda, o Trinity College iniciou sua revisão formal do legado de George Berkeley no ano passado, depois de estudantes da universidade terem lançado uma campanha de lobby e protestos.

A presidente do grêmio estudantil, Gabi Fullam, disse que os alunos e professores da universidade, de origens cada vez mais diversificadas, não podiam continuar aceitando o fato de a biblioteca principal ter o nome de um senhor de escravos. "Ela é uma biblioteca para a comunidade universitária inteira e é uma presença física majestosa, que se eleva no centro do campus", disse, com uma ressalva: "Ninguém está dizendo que devemos tirar Berkeley do currículo."

Os estudantes ainda vão topar com o filósofo em um vitral do século 19 na capela da faculdade. A universidade decidiu conservar o vitral, mas oferecer informações sobre a controvérsia.

Phil Mullen, que em 2020 tornou-se a primeira professora adjunta de estudos negros da universidade, é uma das pessoas que saudou a mudança de nome. Para ela, não se deve desculpar as atitudes de George Berkeley com o argumento de que ele apenas refletiu as ideias de seu tempo.

"Muitas outras pessoas se opunham abertamente à escravidão na época", disse Mullen. "Berkeley não era nenhum inocente. Houve outras pessoas que o visitaram –quacres, judeus, membros da Igreja dos Irmãos Morávios— que tinham posições diferentes sobre a escravidão e que certamente devem ter discutido com ele para contestar sua posição."

Segundo a professora, está claro que Berkeley foi um escravocrata convicto que batizava seus escravos não apenas para salvar suas almas, mas também, como escreveu em 1725, porque achava que isso os tornaria mais obedientes a seus senhores.

O grupo de legado da universidade disse ter recebido 93 solicitações de alunos, docentes e do público relativas ao nome da biblioteca. Uma pequena maioria, 47 pessoas, se disseram a favor da mudança de nome; 16 pediram para que fosse conservado, e as outras assumiram posição intermediária.

A maioria das pessoas a favor da manutenção do nome argumentaram que as ideias de Berkeley refletiam seu tempo e que seria um erro remover o nome de um dos maiores pensadores da Irlanda.

David McConnell, um ex-vice-reitor da universidade, defendeu a abordagem de conservar e explicar. "O nome de Berkeley chama a atenção para George Berkeley, e, como ele foi um grande pensador, é importante que as pessoas saibam sobre ele e, no caso dos estudantes de hoje, talvez se sintam inspiradas", disse McConnell. "Se o nome dele não estiver ali na biblioteca, Berkeley vai desaparecer e acabará sendo conhecido apenas por estudantes de filosofia."

Tradução de Clara Allain

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