Descrição de chapéu Financial Times universidade

'Enem da China' incorpora culto à personalidade de Xi Jinping com frases do líder

Exame de admissão no ensino superior do país assume tom nacionalista com geração cada vez mais desligada da política

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Joe Leahy Sun Yu
Pequim | Financial Times

Zhang, um estudante da província chinesa de Henan, estava fazendo seu exame de ingresso na universidade neste mês e se deparou com uma frase enigmática a partir da qual deveria escrever uma redação: "Apagar as lâmpadas de outros não fará você brilhar mais".

Nos últimos anos, a redação do exaustivo "gaokao" chinês, exame que dura dois dias e determina a colocação dos estudantes na universidade –e, de quebra, é decisivo para a futura carreira profissional futura dos alunos—, vem assumindo um tom cada vez mais nacionalista.

Estudantes do ensino médio fazem exame de admissão no ensino superior da China, o gaokao, em Handan, no norte do país - 17.mai.23/AFP

Neste ano, porém, os responsáveis pelo exame foram buscar inspiração diretamente no "pensamento de Xi Jinping", nome dado ao conjunto de frases do líder chinês, pedindo aos estudantes que escrevessem redações a partir de textos com forte tom implícito anti-Estados Unidos.

Na China moderna é difícil não se deparar com Xi, o líder mais poderoso desde Mao Tse-tung, e suas reflexões marxistas. Retratos do dirigente e faixas com seus slogans cobrem outdoors e paredes de estabelecimentos comerciais, e grandes coletâneas de seus ensaios são expostas em livrarias.

Mas, para analistas, a incorporação do pensamento de Xi ao sistema de ensino chinês para doutrinar potenciais membros do Partido Comunista desde tão jovens reflete uma liderança ansiosa com as ameaças a seu controle e com uma geração que está cada vez mais desligada da política.

"Vemos o partido colocando mais pressão sobre a sociedade e os jovens", afirma Jean-Pierre Cabestan, professor emérito na Universidade Batista de Hong Kong. Para ele, está claro que os perigos geopolíticos e econômicos "convenceram a liderança do partido de que ela precisa de um líder mais forte". "Precisa de um símbolo em torno do qual aglutinar a sociedade."

Uma questão do exame pediu que os estudantes discorressem sobre outra frase de Xi: "Uma flor que floresce sozinha não é a primavera, mas uma centena de flores abrindo juntas formam um jardim repleto de primavera". Os textos teriam sido tirados "dos discursos do secretário-geral Xi Jinping, que expressam verdades comuns em linguagem vívida".

Nem todos os cerca de 13 milhões de estudantes que fizeram o gaokao neste ano enfrentaram questões que cobriram o pensamento do dirigente. Mas muitos que o fizeram eram de províncias distantes de Pequim, como Xinjiang, no noroeste, onde as autoridades foram acusadas de crimes contra a humanidade devido à detenção de mais de um milhão de muçulmanos uigures e de outras minorias étnicas.

Neste ano, quando Xi iniciou um inédito terceiro mandato no poder, há sinais de que ele quer ampliar esse culto à sua personalidade. A maioria dos discursos e documentos oficiais divulga sua doutrina formal, o Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era, que foi consagrado na Constituição chinesa –privilégio dado até agora somente a Mao Tse-tung.

Um dos princípios centrais da ideologia de Xi é realizar "o sonho chinês do grande rejuvenescimento da nação chinesa". Isso é interpretado por muitos analistas como algo que inclui a troca da hegemonia dos EUA por uma ordem multipolar em que uma China mais assertiva exerça influência global importante.

Mas, apesar de seu controle forte sobre a política interna, o líder chinês enfrenta tensões crescentes com os EUA e uma recuperação econômica enfraquecida que está contribuindo para níveis recordes de desemprego juvenil. Em novembro, uma explosão rara de protestos contra os controles anti-Covid atraiu jovens insatisfeitos para as ruas das maiores cidades do país. "A posição do partido na sociedade e no mundo está insegura", diz John P. Burns, professor emérito na Universidade de Hong Kong. "Por isso Pequim está intensificando o controle e tentando levar as pessoas a seguir o mesmo pensamento."

O culto à personalidade de Xi está longe de ser tão extremo quanto o de Mao, que fomentou a desastrosa Revolução Cultural para expurgar supostos obstáculos ao socialismo no interior do partido e à sua liderança, segundo analistas. Mas alguns observadores descrevem a presença pública crescente de Xi como uma "norte-coreanização da China", numa alusão ao domínio de Kim Jong-un no país vizinho.

"Há um senso de insegurança e até mesmo paranoia entre a liderança chinesa", disse Cabestan. "É por isso que esse culto à personalidade está voltando." A mensagem foi bem recebida por Zhang, o estudante da província de Henan. Em seu exame, ele fez uma interpretação geopolítica da frase de Xi que teria deixado o líder orgulhoso, escrevendo que "o ‘hegemonismo’ dos EUA não conduz à paz mundial".

Outro estudante, também de sobrenome Zhang mas não aparentado com o primeiro, escreveu que os jovens devem "construir uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade", ecoando uma frase de Xi que muitos analistas interpretam como alusão ao fim da predominância dos EUA.

Mas alguns professores disseram que muitos estudantes, especialmente fora das cidades de Xangai, Pequim e Guangzhou, podem não entender as conotações da questão do exame. "Ensino ciências", disse uma professora de sobrenome Li, de Henan, que ajudou seus alunos a se preparar para o gaokao. "Eles não estudam política e não assistem às notícias na TV. Não devem conhecer o contexto político."

Burns, da Universidade de Hong Kong, disse que os exames suscitam perguntas sobre as prioridades da liderança chinesa na educação da próxima geração. "Estão buscando conformidade ideológica ou procuram originalidade e pensamento não limitado pelos padrões?", disse ele.

Tradução de Clara Allain

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