Descrição de chapéu The New York Times

EUA encaram legado tóxico da guerra materializado em toneladas de lodo radioativo

Resíduo altamente perigoso deriva da produção do plutônio usado nas bombas atômicas como a lançada sobre Nagazaki

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Ralph Vartabedian
The New York Times

O Departamento de Energia dos Estados Unidos produziu entre 1950 e 1990 em média quatro bombas nucleares por dia em fábricas construídas às pressas, com poucas medidas de proteção ambiental, que deixaram para trás um legado imenso de resíduos radiativos tóxicos.

Em nenhum lugar os problemas foram maiores que em Hanford, no estado de Washington, onde engenheiros enviados para fazer a limpeza após o término da Guerra Fria descobriram 54 milhões de galões de lodo altamente radiativo deixados pela produção do plutônio usado nas bombas atômicas dos EUA, incluindo a que foi jogada sobre a cidade japonesa de Nagasaki, em 1945.

Alerta de radiação em estrada próxima de Hanford Site, no estado de Washington
Alerta de radiação em estrada próxima de Hanford Site, no estado de Washington - Mason Trinca - 10.ago.22/The New York Times

Limpar os tanques subterrâneos dos quais resíduos tóxicos estavam vazando na direção do rio Columbia, a apenas dez quilômetros de distância, e estabilizá-los de alguma maneira para seu descarte permanente era um dos problemas químicos mais complexos já vistos. Os engenheiros pensavam que o haviam resolvido anos antes com um plano complexo para extrair o lodo, revesti-lo de vidro e depositá-lo nas profundezas das montanhas do deserto de Nevada.

Mas a construção de uma usina de tratamento químico de cinco andares e 12,8 mil metros quadrados para dar conta da tarefa foi suspensa em 2012 –depois de US$ 4 bilhões (R$ 19,8 bilhões) já terem sido gastos— quando se descobriu que estava cheia de defeitos de segurança. A construção da usina está paralisada há 11 anos, um símbolo potente do fracasso do país, quase 80 anos depois do fim da Segunda Guerra, em lidar com o legado mais mortífero da era atômica.

A limpeza em Hanford agora se encontra em um ponto crítico de inflexão. O Departamento de Energia vem conduzindo discussões com autoridades públicas e a Agência de Proteção Ambiental (EPA), para tentar reformular o plano. Mas muitos receiam que os compromissos mais prováveis, que podem ser anunciados nos próximos meses, coloquem em risco a rapidez e qualidade da limpeza.

Segundo algumas pessoas que acompanham as negociações, o governo avalia a necessidade de deixar milhares de galões de resíduos enterrados nos tanques subterrâneos rasos de Hanford e envolver parte deles não em vidro impenetrável, mas em um revestimento de argamassa de concreto que quase certamente vai se decompor milhares de anos antes dos materiais tóxicos que se pretende que contenha.

"O Departamento de Energia está chegando a uma grande encruzilhada", disse Thomas Grumbly, ex-secretário assistente do departamento que comandou o projeto no início, durante o governo Clinton.

Hanford, que abrange cerca de 1.500 quilômetros quadrados de deserto, é o maior e mais contaminado de todos os locais de produção de armas atômicas, alguns dos quais estão tão poluídos que jamais poderão voltar ao uso público. Mas o problema é urgente, dado o risco de radionuclídeos contaminarem o rio Columbia, fonte vital de água para cidades, fazendas, tribos e fauna em dois estados.

A busca por uma solução se arrasta há tanto tempo que há pressão para ser produzido algum resultado que justifique os gastos imensos, mesmo que ela não atenda às expectativas. Isso pode assinalar um recuo em relação às promessas feitas por muito tempo aos habitantes da área vizinha de que o governo se pautaria pelos padrões de limpeza mais elevados possíveis.

A possibilidade de um compromisso que permita que parte desses resíduos permaneçam no fundo dos tanques desencadeou divergências entre especialistas. Alguns deles dizem que o uso de argamassa para envolver os resíduos seria uma solução econômica e segura. Críticos do plano dizem que os resíduos podem persistir por mais tempo que a argamassa e voltar a vazar em séculos futuros.

Funcionários do Departamento de Energia dizem que qualquer plano adotado será o bastante para deixar o local seguro para gerações futuras e que quaisquer resíduos que sejam deixados no local não colocarão a saúde humana em risco.

Brian Vance, ex-capitão da Marinha e administrador do local em Hanford, disse que as expectativas originais bateram de frente com obstáculos científicos e financeiros enormes. Segundo ele, os engenheiros estão tentando identificar uma solução que seja ao mesmo tempo segura e viável.

"Se você pensar nas decisões tomadas nos anos 1990, o plano era um pouco diferente na época", disse. Envolvia o uso de tecnologia ainda não comprovada "que era fácil construir na maquete, mas difícil quando se avança e enxerga a realidade concreta".

Grumbly disse que apresentou ao governo Clinton, anos atrás, estimativas orçamentárias de centenas de bilhões de dólares para realizar a limpeza de antigos locais de produção de armas nucleares em todo o país. Ele recordou que funcionários do Escritório de Administração e Orçamento o instruíram a "nunca mostrar essas estimativas publicamente".

"Eles não priorizaram a questão", disse Grumbly, aludindo ao governo federal. Ele destacou que mesmo hoje o governo Biden não nomeou um secretário assistente para ser responsável pela limpeza.

Tal como está, apenas o tratamento dos resíduos nos tanques de Hanford já é orçado em até US$ 528 bilhões (R$ 2,6 trilhões). Ao ritmo atual, o projeto pode levar séculos para ser custeado e concluído.

O Congresso destinou US$ 2,8 bilhões (R$ 13,8 bilhões) para Hanford este ano, dos quais US$ 1,7 bilhão (R$ 8,4 bilhões) alocado para a limpeza dos tanques. Mas houve poucos avanços reais.

Gary Brunson, o ex-diretor da usina de tratamento de resíduos, disse que a limpeza fracassou. Em 2013 ele e dois outros gerentes técnicos registraram uma denúncia contra a empresa principal responsável pela limpeza, Bechtel, e sua sócia, acusando-a de realizar trabalho falho e depois fazer lobby ilegal por um aumento do orçamento. O Departamento de Justiça se uniu a Brunson em uma ação contra a empresa. A ação foi resolvida em 2016 com um acordo no valor de US$ 125 milhões (R$ 619 milhões).

Na visão de Brunson, concentrar-se no tratamento mais rápido de resíduos menos perigosos assinalaria um recuo importante da missão. "O objetivo todo da usina era tratar os resíduos de alto grau de toxicidade", disse. "Não conseguiram isso, então estão tratando os resíduos menos tóxicos. Eles não têm um plano abrangente, por isso estão inventando metas interinas."

A arquitetura original para a imobilização dos resíduos previa a separação química, usando a usina cuja construção foi paralisada, em fluxos radiativos altos e baixos. Então, duas usinas de derretimento separadas –espécies de vulcões criados pelo homem que operam na temperatura de lava— envolveriam os dois fluxos em vidro. Mas ainda não foi encontrada maneira de fazer isso em segurança.

"Construíram uma das ratoeiras mais complexas do mundo", disse Brunson. "Não vai funcionar nunca."

A realidade, afirma, é que os 54 milhões de galões de lodo radiativo provavelmente nunca serão removidos. Ele acredita que serão envolvidos em argamassa e deixados no local para que gerações futuras se ocupem do problema.

A construção da usina de tratamento químico foi sustada pelo secretário de Energia do ex-presidente Barack Obama, Steven Chu, em meio a alegações de que o processo poderia levar a explosões de gás hidrogênio e fissão nuclear espontânea.

O Government Accountability Office (GAO, órgão dos EUA responsável pela prestação de contas públicas) recomendou que a usina seja abandonada, devido aos custos necessários para fazê-la funcionar algum dia. "Poderíamos construir um elevador até a Lua. Eu colocaria a usina na mesma categoria", disse Nathan Anderson, diretor da equipe ambiental do GAO.

Depois vem a questão da estabilização permanente dos resíduos. Quase ninguém discorda que os resíduos mais perigosos, de nível radiativo mais elevado, devem ser involucrados em vidro e enterrados em um repositório geologicamente estável, como o repositório de Yucca Mountain, em Nevada, que há décadas está fora de cogitação por motivos políticos.

Mas o que fazer com os resíduos de nível mais baixo é mais incerto e forma uma parte importante das negociações em curso. O GAO concluiu que envolver boa parte deles em argamassa será ambientalmente tão seguro quanto envolvê-los em vidro, que o trabalho seria concluído em menos tempo, pouparia bilhões de dólares e encerraria um risco menor de acidente industrial.

Mas o gerente de projeto de Hanford no Departamento de Ecologia do estado de Washington, David Bowen, enxerga isso como risco à segurança e quer que esses resíduos sejam levados para fora do estado. O que está em jogo com o tratamento dado aos resíduos altamente tóxicos é ainda maior.

Segundo funcionários do estado e documentos do Departamento de Energia, mesmo que a maior parte desses resíduos seja vitrificada, engenheiros estimam que até 1% do lodo radiativo pode ficar para trás quando a maior parte for removida.

Tradução de Clara Allain

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