Descrição de chapéu The New York Times

Sérvia, mesmo após dois ataques a tiros em sequência, está pouco disposta a se desarmar

Campanha de desarmamento em decorrência de massacres recebeu 50 mil armas, menos de 2% do total

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Kraljevo (Sérvia) | The New York Times

Ele aprendeu a atirar com o avô antes de começar a escola e lutou em três guerras como soldado da Iugoslávia e depois no Exército sérvio durante os conflitos dos Bálcãs na década de 1990.

Sinisa Janicijevic tornou-se um atirador tão bom que costuma ser convidado para casamentos nas aldeias ao redor de sua cidade natal, Kraljevo, na região central da Sérvia, para garantir que a noiva apareça —o que, por tradição, exige derrubar uma maçã colocada numa árvore em frente à casa da família dela.

O noivo deve realizar essa tarefa, mas, com medo de errar, costuma chamar um atirador substituto.

Homem careca com armas expostas em parede ao fundo
Jandrija Martic, gerente da loja de armas Royal Wolf em Kraljevo, na Sérvia - Vladimir Zivojinovic - 25.mai.23/The New York Times

O profundo apego da Sérvia às armas e a abundância delas têm sido citados como explicação para os massacres que ocorreram em maio —um numa escola na capital, Belgrado, e outro numa aldeia agrícola perto dali—, surpreendendo a nação, mesmo que o índice de violência envolvendo armas seja baixo.

Após os assassinatos, o presidente Aleksandar Vucic prometeu endurecer as leis para impor um "desarmamento quase completo". Os dois ataques a tiros pareciam ter pouco em comum além da juventude dos culpados; o ataque na escola por um adolescente de 13 anos envolveu pistolas registradas legalmente, e o outro massacre, por um homem de 21, um fuzil automático ilegal.

Os assassinatos provocaram um debate nacional sobre o que fazer com o grande número de armas no país —e se esse é de fato o problema. A imagem é muito mais complicada do que um simples controle de armas. A Sérvia já tem restrições entre as mais rígidas da Europa. Mas a aplicação desigual deixou um grande número de armas ilegalmente em mãos privadas —as que Vucic está perseguindo principalmente—, e muitos sérvios, sejam bandidos que as usam em sua atividade ou aldeões que guardam velhas espingardas de família, provavelmente não os entregarão, dizem especialistas.

Numa série de protestos em Belgrado, os manifestantes acusaram o governo de se concentrar no controle de armas para evitar problemas sociais mais profundos e intratáveis, principalmente entre os jovens.

Janicijevic, o militar veterano, que também é um caçador entusiasmado, disse acreditar que as leis de controle de armas são muito rígidas e que o problema real é uma "cultura de violência" generalizada, agravada pelas redes sociais. Ele observou que não houve ataques a tiros na Sérvia na década de 1990, quando as leis sobre armas eram relativamente frouxas e raramente aplicadas, e o país estava inundado de armas devido às guerras nos países vizinhos Bósnia, Croácia e Kosovo.

Todas as armas automáticas são proibidas na Sérvia, assim como a maioria das semiautomáticas. Uma condenação criminal por acidente de trânsito ou outros delitos impossibilita a posse legal de armas. As pessoas que conseguem obter permissão de porte de arma por motivos de segurança pessoal precisam solicitar uma permissão separada se quiserem levar armas para fora de suas casas.

Para obter licenças para seus dois fuzis de caça, Janicijevic teve que passar por testes psiquiátricos e médicos, ser examinado por uma associação de caça do Estado e esperar meses até que policiais interrogassem seus vizinhos sobre se eles haviam visto sinais de comportamento agressivo. Ele tem que manter suas armas trancadas num armário separado da munição. Em vez de endurecer esses controles já rígidos, disse Janicijevic, o governo deveria se concentrar no controle das redes sociais.

Não há evidências de que as redes sociais ou os hábitos de assistir à TV tenham contribuído para qualquer dos ataques do mês passado. Mas os sérvios críticos de Vucic enfatizaram o fato de que o segundo atirador, de acordo com moradores da aldeia que o conheciam, admirava muito Kristijan Golubovic, um traficante de drogas e ladrão condenado que apareceu em reality shows no Pink, um canal estritamente pró-governo, e como convidado em uma segunda emissora leal ao presidente, Happy.

Depois de matar oito pessoas num ataque que começou na frente de uma escola, o atirador fugiu para Kragujevac, cidade onde há uma grande fábrica de armas e cujos moradores dizem estar cheia delas.

"Você desmaiaria se soubesse quantas pessoas têm armas por aqui", disse Vlada Peric, um corpulento veterano de guerra que trabalha em Kragujevac como guarda-costas.

Ele culpou a influência americana, divulgada pelas redes sociais, por transformar o apego folclórico da Sérvia às armas em assassinatos em massa. Os jovens, disse ele, "só querem ser modernos e seguir as tendências modernas", incluindo ataques a tiros em escolas. Mas a Sérvia, afirmou, "não é o Texas".

Entre os principais alvos da raiva dos manifestantes estão canais de televisão como Pink e Happy, que, entre a cobertura extremamente lisonjeira a Vucic, exibem reality shows brutalmente violentos que às vezes apresentam criminosos condenados como Golubovic.

Apesar das rígidas restrições da Sérvia à posse de armas, os criminosos não têm problemas em se armar, de acordo com Predrag Petrovic, pesquisador do Centro de Política de Segurança de Belgrado.

"Não se trata de quão rígidas são nossas regras, mas de como elas são implementadas", disse Petrovic. As regras impostas com grande vigor aos caçadores e a outros proprietários regulares de armas, acrescentou, raramente são aplicadas a amigos do governo ou grupos do crime organizado.

Mulher ajoelhada em frente a flores e velas
Mulher acende vela em memorial em homenagem a vítimas de massacre a escola em Belgrado - Oliver Bunic - 5.mai.23/AFP

"A lei é uma via de mão única: as pessoas comuns a seguem, e os bandidos simplesmente a ignoram", disse Aco Filipovic, dono de um bar em Kraljevo que disse ter desistido de sua arma devido à papelada e ao custo de obter uma licença depois que as leis foram endurecidas em 2015.

O governo informou que, desde que declarou uma anistia no início de maio sobre posse ilegal de armas para proprietários que entregassem suas armas, recebeu mais de 50 mil armas e artefatos explosivos, menos de 2% do número total estimado de armas de fogo em mãos privadas.

Números precisos sobre quantas armas, legais e ilegais, existem na Sérvia são difíceis de encontrar. O governo divulga apenas números irregulares. Um relatório de 2018 do grupo Small Arms Survey, com sede em Genebra, calculou o número total de armas em mãos de civis na Sérvia em 2,7 milhões e situou o país em terceiro lugar em posse de armas per capita, juntamente com Montenegro, outra antiga parte da Iugoslávia. Eles ficaram atrás apenas dos Estados Unidos e do Iêmen, um país em guerra.

Aaron Karp, professor sênior da Universidade Old Dominion em Norfolk, na Virgínia (EUA), e principal autor do relatório, admitiu que, devido aos dados oficiais vagos da Sérvia, o número é "o melhor esforço", acrescentando: "O método é sólido, mas não é um número confiável".

Seja qual for o número real, a Sérvia tem uma taxa de homicídios relativamente baixa, ficando ao lado da Suécia, embora uma série de assassinatos horríveis cometidos por grupos do crime organizado tenha dado ao país uma reputação desagradável de violência extrema.

Ligações bem documentadas entre o governo e o crime organizado, incluindo um grupo notoriamente violento liderado por Veljko Belivuk, disse Petrovic, também minaram a confiança nas promessas de Vucic de controlar as armas e aumentaram o clima de medo que só instiga o apetite por armas. As tensões sobre Kosovo, que declarou independência da Sérvia em 2008, alimentaram esses sentimentos, disse ele.

"Vucic está constantemente dizendo às pessoas que estamos à beira de uma guerra com Kosovo e enviando a mensagem de que seus adversários políticos trabalham para interesses estrangeiros", disse.

"A Sérvia é governada pelo medo."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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