Descrição de chapéu The New York Times China

Chinesa investiga se marido preso era blogueiro anônimo contra regime de Xi Jinping

Para Bei Zhenying, Ruan Xiaohuan era autor por trás do Program Think, que fez último post um dia antes de detenção

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Vivian Wang
The New York Times

Não era como se Bei Zhenying não soubesse que o marido era fora do comum ou que guardava segredos.

Ele era um talentoso programador de computadores, e, quando se conheceram, cursando uma universidade em Xangai, Bei se rendeu à inteligência curiosa e a seu espírito irreverente. Mas ele fazia questão de ser inflexível, recusando-se a usar redes sociais ou comprar roupas novas, e protegia sua privacidade com unhas e dentes, trancando-se para fazer um trabalho do qual se negava a falar.

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Bei Zhenying em seu apartamento, em Xangai, ao lado de uma imagem de seu marido, Ruan Xiaohuan - 29.abr.23/The New York Times

Bei, 45, aceitava essas peculiaridades como hábitos de um nerd profissional, alguém que vivia mergulhado num mundo que ela, gerente de negócios, não entendia. Mas nunca imaginou quão pouco sabia sobre seu marido, Ruan Xiaohuan, até a polícia de Xangai invadir o apartamento deles e levar Ruan embora.

As autoridades o acusaram de conspirar para derrubar o governo chinês, escrevendo artigos "que difamam o sistema político" do país. Em fevereiro, um juiz o sentenciou a sete anos de prisão. Bei, então, ficou sozinha, tentando descobrir mais sobre a vida que Ruan lhe havia ocultado.

O que descobriu nos meses seguintes foi mais do que um segredo pessoal. Bei hoje acredita que Ruan foi o autor de um dos blogs mais misteriosos da internet chinesa, que, escrito dentro do próprio país, durante 12 anos ridicularizou o Partido Comunista –uma façanha impensável sob o líder de linha dura Xi Jinping.

O blog, Program Think, gozava de status quase mítico entre os seguidores. Os posts anônimos mapeavam a riqueza oculta dos líderes chineses, um dos temas mais sensíveis para o governo, compartilhavam dicas para esconder rastros digitais, zombando das autoridades por não conseguirem desmascarar o autor, e incentivavam os leitores a pensar por si mesmos, desafiando a sociedade que os cercava.

O blog silenciou em maio de 2021 –o mesmo mês em que Ruan, que hoje tem 46 anos, foi preso.

É virtualmente impossível confirmar se Ruan era o autor do Program Think. O tribunal que o sentenciou não identificou seu site por nome, provavelmente para evitar não lhe dar mais fama. A China cerca os casos de segurança nacional de sigilo absoluto, e Bei não tem podido conversar com Ruan. O Program Think praticamente não oferecia detalhe identificador nenhum.

Seja como for, os destinos do Program Think e de Ruan fazem parte da mesma história —o subterfúgio ao qual precisam recorrer cidadãos chineses que queiram expressar opiniões dissidentes sob Xi. E, em última análise, o que aconteceu com o blog e com Ruan talvez também aponte para a quase impossibilidade de fazê-lo em um Estado de vigilância sempre crescente.

Mas suas histórias também revelam como o pensamento independente continua a emergir, apesar da campanha implacável do líder –ou, às vezes, devido a ela. Bei não se interessava por política até a prisão de seu marido, me contou ela quando nos conhecemos neste ano, depois de decidir divulgar o que sabe sobre a identidade de Ruan. Ela nem sequer se deu ao trabalho de contornar a censura chinesa da internet. Mas, quando foi forçada a procurar respostas, acabou embarcando numa jornada de conscientização –como o processo que o Program Think se propunha a inspirar.

"Até então eu nunca havia sofrido qualquer grande adversidade", disse ela. "Só queria uma vida tranquila e feliz. Hoje minha visão da realidade é totalmente diferente. Consigo entender as coisas que ele escreveu"

Um excêntrico atrás de uma porta fechada

Dois anos após a prisão de Ruan, sua sala de trabalho ainda ostenta os sinais das horas que ele passou ali, construindo uma vida alternativa em segredo. As rodinhas de sua cadeira preta abriram um sulco no piso da sala. Livros de programação amarelados e uma Constituição chinesa de bolso estão dispostos sobre uma prateleira de metal. Uma cama extra está encostada contra a parede.

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O escritório onde Ruan Xiaohuan passava horas quando morava com sua Bei - 29.abr.23/The New York Times

Quando a visitei, em abril, Bei admitiu que, em retrospectiva, estava claro que Ruan escondia algo. Ele se irritava se ela abria a porta, dizendo que precisava se concentrar quando estava escrevendo código.

Mas ela atribuía essa atitude à sua dedicação ao trabalho, e a habilidade dele nessa área estava clara. Ruan supervisionou a segurança da informação para as Olimpíadas de Pequim, em 2008, por exemplo, segundo um certificado de sua companhia na época. Uma revista apoiada pelo governo publicou um perfil dele em 2010: "Tenho sede de nova tecnologia", disse. "Apenas novidades na tecnologia me apaixonam."

De vez em quando, Bei se aborrecia com as excentricidades do marido. Com o tempo, Ruan foi ficando cada vez mais recluso, queixando-se de não conseguir encontrar pares intelectuais. Em 2012, ele deixou seu emprego, dizendo que não era suficientemente instigante, e começou a passar ainda mais tempo em sua salinha, lendo sobre software de código aberto, diz ela.

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Foto sem data de Bei mostra certificado que Ruan recebeu de sua empresa em 2008 reconhecendo seu trabalho em segurança de TI nas Olimpíadas de Pequim. - Bei Zhenying via The New York Times

Ele sempre se recusou a instalar o WeChat ou o AliPay, os onipresentes aplicativos chineses de mensagens e pagamento, citando preocupações de segurança. Além disso, durante a visita de um técnico para consertar o ar-condicionado, Ruan fez questão de vigiá-lo o tempo inteiro.

Mas Bei atribuía a aparente paranoia do marido ao trabalho. Ruan às vezes mencionava notícias políticas, como a corrupção no governo, mas não parecia estar especialmente interessado nelas.

Uma visita da polícia

A campainha tocou pouco após as 12h de 10 de maio de 2021. Bei pediu a Ruan que atendesse e então ouviu sons de briga. Correu até a porta e viu uma multidão de policiais —o marido já tinha sido arrastado.

Os policiais passaram 12 horas revistando o apartamento. Avisaram Bei, em choque, que Ruan cometera o crime de subversão do poder do Estado, delito pouco definido frequentemente evocado na China para punir críticos. Quando ficou claro que ela não sabia nada sobre o blog dele, os policiais foram embora.

Em um primeiro momento, ela ficou furiosa com Ruan –por manter segredos e colocá-la em risco. Mas acabou decidindo dar-lhe o benefício da dúvida, especialmente porque a polícia lhe dissera muito pouco.

Ela e seus sogros especularam que Ruan teria sido um blogueiro sem grande importância e que as autoridades estariam apenas tentando calar críticas antes do centenário do Partido Comunista, que ocorreria naquele ano. Pensavam que Ruan seria solto em pouco tempo. Bei não tentou encontrar o blog dele, achando que tinha muito pouca informação em que se basear.

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Foto da infância de Ruan mostra o programador com seus pais - Bei Zhenying via The New York Times

O tribunal adiou o julgamento do caso diversas vezes e então, durante o lockdown da Covid em Xangai, o suspendeu por tempo indeterminado. Mas em 7 de fevereiro, 21 meses depois da última vez em que vira seu marido, Bei foi notificada de que poderia assistir ao sentenciamento dele três dias mais tarde.

Quando Ruan foi trazido para o tribunal, estava magérrimo. Seu cabelo ficara quase inteiramente branco. Ele e Bei se olharam rapidamente, mas então os guardas o obrigaram a ficar de frente para o juiz.

"Até aquele momento, eu ainda o culpava um pouco", contou ela. "Mas quando o vi daquele jeito, não pensei em mais nada. Não importava o que ele tivesse feito, ninguém deveria tratá-lo dessa maneira."

Bei então ouviu, em choque, o juiz sentenciar Ruan a sete anos de reclusão, citando no veredicto a "insatisfação de longa data" que Ruan teria sentido em relação ao governo.

Ainda mais chocante, para ela, foi que o veredicto não identificou o blog por nome nem mencionou seu conteúdo. Disse apenas que os artigos supostamente subversivos começaram a sair em junho de 2009, que foram mais de cem e alcançaram "grande número de usuários da internet".

Pela primeira vez, Bei decidiu que precisava contornar os controles chineses e descobrir o que o governo parecia tão determinado a manter oculto. Indo a cibercafés para se proteger, aprendeu a instalar softwares anticensura e então digitou no Google as poucas pistas das quais dispunha: "2021, desaparecido, blog".

O primeiro resultado em chinês foi um artigo de uma publicação estrangeira questionando o que teria acontecido com um blog intitulado Program Think.

Uma voz familiar

Bei ficou assustada. O artigo da publicação dizia que o site expunha "os segredos dos poderosos da China". Se seu marido era responsável, será que ele teria de fato tramado subversão?

Mas à medida que ela foi lendo as publicações do blog, teve certeza de duas coisas. Primeiro: Ruan o escrevera. E segundo: ele não havia feito nada de errado. Os posts começaram em janeiro de 2009 recomendando livros sobre engenharia de softwares e reclamando de erros comuns de codificação.

Mas, cinco meses mais tarde, o blog começou a adotar um tom mais crítico. O blogueiro escreveu que os censores chineses haviam começado a bloquear mais sites, incluindo o Twitter e o Blogspot, no qual o Program Think estava hospedado. "Isso é péssima notícia!", escreveu o autor. "É hora de escrever sobre alguma coisa que não seja tecnologia."

O blogueiro então começou a carregar no site ebooks como "1984", de George Orwell, e a compartilhar instruções sobre a encriptação de arquivos de dados. Posts explicaram o que foi o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, e mostraram como o governo chinês manipulou fotos históricas.

Para Bei, não era só a linha do tempo que correspondia nem as recomendações de livros que ela sabia que Ruan apreciava. Era a voz dele: ansiosa por aprender e ensinar, mas também ousada, até arrogante.

"Minha prioridade é ser o coveiro do partido-Estado", escreveu o blogueiro sobre o projeto que mapeava os elos financeiros de líderes chineses usando informações de artigos de publicações de outros países.

A arrogância cresceu à medida que o blogueiro ganhava destaque e, desse modo, tornava-se alvo de Pequim. Um post de 2019 intitulado "Por que o governo não consegue me pegar" noticiou diversas tentativas de atacar o autor, incluindo ataques a uma conta do Gmail ligada a ele. O governo também pediu formalmente ao GitHub, plataforma de fonte aberta em que o projeto de mapeamento estava hospedado, para censurá-lo. Segundo o GitHub, foi o primeiro pedido de Pequim para tirar um blog do ar.

"Camaradas policiais, trabalhem mais duro", disse em outro post, com um emoji de rostinho sorridente.

Mas as autoridades lançaram mão de tecnologia cada vez mais sofisticada para caçar seus críticos.

Bei hoje pensa que Ruan previu que seria preso. Nos meses antes de ser detido, ele se queixou várias vezes de instabilidade na internet deles. Uma vez, comentou que um policial o abordara numa lanchonete Burger King que ele frequentava, perguntando se ele ia lá com frequência. O post final do Program Think, em 9 de maio de 2021, foi uma lista atualizada de ebooks que o blogueiro havia carregado.

No dia seguinte, a campainha de Bei tocou.

Um despertar

A primeira coisa que Bei sentiu ao ler o blog foi ciúmes. Ela teve ciúmes dos leitores de Ruan, que haviam recebido tanta atenção dele, diferentemente dela. Mas ela também sentiu admiração renovada por seu marido. E indignação com a sentença pesada proferida contra ele.

Ela decidiu mudar sua abordagem. Contratou dois advogados eminentes de direitos humanos de Pequim para registrar uma apelação contra a sentença. Falou com jornalistas estrangeiros sobre sua convicção de que Ruan era o autor do Program Think. Abriu uma conta no Twitter para mobilizar fãs do blog.

E mergulhou mais fundo na internet não censurada, descobrindo nomes de ativistas perseguidos, advogados e jornalistas. "Antes, pensava que os jornais de fora da China e os de dentro do país abordavam assuntos sob ângulos diferentes. Nunca imaginei que seriam mundos inteiramente distintos."

A pressão sobre Bei aumentou imediatamente. Em abril, quando viajou a Pequim para encontrar seus advogados, policiais a impediram de deixar seu hotel. Quando eu a visitei em sua casa, ela colocou árias de George Frederich Handel para tocar em alto volume para impedir qualquer possível grampeamento.

No final de maio, Bei estava especialmente otimista. O tribunal havia de repente adiado por tempo indeterminado sua decisão sobre o recurso. Ela me disse em mensagem de texto que isso indicava que as autoridades estariam pensando em reduzir a sentença de Ruan. Mas leniência é algo raro na China de Xi.

Duas semanas mais tarde, a conta de Bei no Twitter desapareceu. Um dos advogados dela disse que não estava conseguindo comunicar-se com ela. Após alguns dias, ele disse que Bei estava em segurança, mas não poderia fazer mais comentários –um sinal de que as autoridades provavelmente a avisaram para guardar silêncio. Ela não se expressou publicamente desde então.

Tradução de Clara Allain

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