Guru do expansionismo da Rússia publica artigo pró-guerra em revista militar brasileira

Aleksandr Dugin foi convidado pela Escola Superior de Guerra; Ministério da Defesa fala em oferecer 'visões distintas'

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Brasília

Considerado guru do expansionismo da Rússia e um dos nomes mais proeminentes a favor da invasão da Ucrânia, o controverso filósofo russo Aleksandr Dugin publicou, a convite de militares brasileiros, um artigo em que defende o conflito no Leste Europeu na última edição do Caderno de Estudos Estratégicos, da ESG (Escola Superior de Guerra), instituição ligada ao Ministério da Defesa.

No texto, Dugin apresenta o conflito como um potencial vetor para uma mudança na ordem mundial e convoca o Brasil, por meio do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a participar desse processo —que, ainda nas palavras do pensador, destruiria o chamado globalismo e o domínio econômico e cultural do Ocidente.

O cientista político russo Aleksandr Dugin toma chimarrão em Curitiba, em visita ao Brasil em 2012 - Arquivo Pessoal

Chamado de fascista devido a suas ideias ultranacionalistas, Dugin ganhou adeptos brasileiros nos últimos anos. Ele chegou inclusive a participar de debates com Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo morto em 2022.

Alguns dos admiradores de Dugin são militares, em boa parte da reserva, que passaram a compartilhar vídeos do filósofo em canais no YouTube. Foi nesse contexto que, segundo pessoas ligadas ao Ministério da Defesa disseram à Folha, o russo foi chamado pela ESG para escrever o artigo na revista brasileira.

A iniciativa ainda sucedeu o cancelamento de uma palestra de Dugin no Rio de Janeiro a convite da mesma instituição meses atrás. Oficialmente, falou-se em problemas de agenda para justificar o embaraço.

A publicação do artigo gerou críticas internas no Ministério da Defesa e na Escola Superior de Guerra. A avaliação, segundo relatos feitos à Folha, é de que Dugin é considerado fascista e não pode ser simplesmente apresentado como uma antítese aos críticos da Guerra da Ucrânia.

Em nota, o Ministério da Defesa disse que a publicação do artigo do filósofo ultranacionalista tinha como objetivo "conhecer as realidades nacional e internacional". "A escolha para a publicação de um artigo de Dugin, na edição de 2023, deu-se em razão desta edição ter buscado oferecer aos leitores várias percepções da crise russo-ucraniana, com autores de diferentes nacionalidades e visões distintas sobre o conflito", afirmou a pasta.

Dugin é um dos cinco autores que participam da edição do Caderno de Estudos Estratégicos. Ele divide espaço com nomes como Luis Bitencourt, professor de Segurança Internacional do William J. Perry Center for Hemispheric Defense Studies, dos Estados Unidos, por exemplo.

Em seu texto, o russo defende a tese de que os países considerados de "segundo mundo" devem se insurgir contra o domínio econômico e cultural das potências do Ocidente para criar o que ele chama de "Estado-Civilização". O ultranacionalista ainda relativiza conceitos como democracia e ditadura para afirmar que os países devem exercer soberania à sua própria maneira.

"Existem forças e padrões em ação no Estado-Civilização que a ciência política ocidental moderna não compreende. Eles não são redutíveis às estruturas do Estado nacional e não são apreendidos pela análise macro e microeconômica. Os termos ‘ditadura’, ‘democracia’, ‘autoritarismo’, ‘totalitarismo’, ‘progresso social’, ‘direitos humanos’ etc. não têm significado aqui ou requerem tradução fundamental", escreve.

Dugin ainda diz que cada país deve ser soberano e possuir autoconsciência para defender "suas teorias de integração e projetos ambiciosos". "A Rússia contemporânea chegou perto desse status, e a operação militar especial na Ucrânia [eufemismo para a guerra utilizado pelo Kremlin], acompanhada de sua retirada das redes globais, é uma das provas dessa vontade profunda e poderosa", escreve.

Ainda segundo ele, a inação de países de "segundo mundo" contra a dominância do Ocidente teria como "próximo passo lógico" a "declaração de um Governo Mundial". "Muitas vezes (mas nem sempre) a mudança da ordem mundial ocorre por meio de guerras —incluindo guerras mundiais. A construção de um mundo multipolar, infelizmente, também passará por guerras. Se as guerras como tais não podem ser evitadas, é possível limitar seu alcance, determinar suas regras e estabelecer suas leis", conclui.

Desse modo, a Guerra da Ucrânia é, segundo Dugin, resultado dos esforços de Moscou para evitar que a identidade ocidental seja imposta a toda a população ucraniana —especialmente em regiões como a península da Crimeia, anexada por Putin após seu governo aliado em Kiev ser derrubado em 2014 e de população etnicamente russa em sua maioria.

Vale notar que o pensador defendia ideias nessa linha desde aquela época, ou seja, muito antes da eclosão do maior conflito em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial. "A verdade é que o leste e sul da Ucrânia têm uma população com uma história e identidade cultural completamente diferentes. A Ucrânia é o típico Estado falido pós-soviético, artificial, que nunca existiu antes de 1991. O sul e o leste são pró-Rússia, antifascistas e fortemente pró-soviéticos. Sua população pertence ao mundo russo e à civilização eurasiana", disse ele em entrevista à Folha em 2014.

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