Descrição de chapéu Entrevista da 2ª terrorismo

'Se você não compartilha sua história, protege criminosos', diz Nobel da Paz iraquiana

Escravizada pelo Estado Islâmico, Nadia Murad luta contra uso da violência sexual como arma de guerra

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São Paulo

A iraquiana Nadia Murad, 30, passou três meses em cativeiro em 2014, quando foi escravizada sexualmente por extremistas do Estado Islâmico (EI) durante o genocídio dos yazidis, minoria religiosa perseguida pela facção terrorista no país do Oriente Médio. Ela conseguiu fugir, mas suas sobrinhas morreram nas mãos do EI, assim como sua mãe e seus irmãos.

Nadia Murad, ativista de direitos humanos e vencedora do Nobel da Paz em 2018, posa em sessão de fotos no Palais Brongniart, em Paris - Joel Saget - 11.nov.22/AFP

Mesmo assim, ela encontrou forças para enfrentar o estigma da violência sexual e compartilhar sua história. "Especialmente de onde eu venho, no Iraque, há muito preconceito, e isso torna muito difícil os sobreviventes terem coragem de falar", diz à Folha. "Mas se você não compartilha sua história, está protegendo os criminosos, porque eles não serão punidos."

Em 2018, Murad ganhou o Nobel do Paz por seus esforços para acabar com o uso da violência sexual como uma arma durante conflitos —o ginecologista congolês Denis Mukwege dividiu com ela a láurea na ocasião. A iraquiana esteve no Brasil em meados de junho para participar do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento.

Qual é a situação hoje em Sinjar, sua terra natal, onde ocorreu o genocídio perpetrado pelo Estado Islâmico em 2014?
Vou frequentemente para lá, a última vez foi em fevereiro. Muita gente ainda não voltou para a região. Desde que Sinjar foi liberada, foi negligenciada pela comunidade internacional e, principalmente, pelo governo iraquiano. Muitos yazidis nunca foram embora, ficaram nas montanhas, resistindo ao EI, com armas pequenas. Por isso o EI nunca conseguiu dominar totalmente a região.

Sinjar foi liberada em 2016. Mas a região já era muito pobre, nunca foi prioridade para o governo do Iraque. Cerca de 6.000 pessoas foram mortas pelo EI. Encontramos 83 valas comuns lá. Qualquer um que não se convertesse [ao islamismo extremista professado pelo EI], não seguisse as regras deles ou simplesmente discordasse deles era assassinado.

O EI deixou tantas minas para trás que um dos meus primeiros projetos teve como objetivo conseguir ajuda internacional e do governo iraquiano para retirá-las —sem isso, as pessoas não poderiam cultivar as terras. Não havia planos de reconstrução para permitir que os yazidis voltassem a elas.

Foi por isso que fundei a Nadia’s Initiative: para ajudar a oferecer serviços básicos para que as pessoas saíssem dos campos de deslocados internos e voltassem. Conseguimos reconstruir mais de 400 fazendas. Além disso, em parceria com a minha advogada, Amal Clooney, estamos trabalhando com a ONU para coletar provas do crime de genocídio cometido pelo EI. Fizemos a exumação de milhares de sepulturas, identificamos milhares de corpos.

Quantos yazidis vivem hoje em Sinjar?
Hoje eles são cerca de 200 mil. Antes, eram 450 mil. Outros 200 mil continuam vivendo nos campos de deslocados internos, na região de Duhok [norte do Iraque]. Essas pessoas vivem a duas horas de onde estavam suas vidas, mas não podem voltar para casa. Não devido ao EI, mas à falta de condições básicas.

São milhares de pessoas crescendo dentro dos campos, uma geração inteira sem educação adequada, assistência médica ou oportunidades de emprego. Estamos vendo um número enorme de casamentos envolvendo crianças, problemas de saúde mental, suicídios. Não há um senso de comunidade nos campos. E muitas dessas pessoas têm falsas esperanças de que vão emigrar para Alemanha, Europa, ou Estados Unidos e Canadá, enquanto muito poucas têm essa sorte.

Além disso, nem todo mundo quer ir embora, muitos querem voltar para suas casas, para Sinjar, mas precisamos de muito mais recursos para reconstruí-la.

Em 2021, o Parlamento iraquiano aprovou uma legislação que estabelecia indenizações para sobreviventes da violência sexual do EI, além de empregos e habitação. Isso está funcionando?
Nós pressionamos muito por essa lei e ficamos muito felizes quando ela foi aprovada. Mas, até agora, apenas alguns poucos sobreviventes conseguiram essa ajuda. E eles [o governo] passaram a exigir testemunhas de que as mulheres foram escravizadas pelo EI, estão dificultando as coisas. Há mais de 4.000 sobreviventes.

As reparações não precisam vir necessariamente em forma de dinheiro, elas podem assumir as formas de assistência psicológica, habitação, educação, ajuda para abrir um pequeno negócio. Estamos tentando fazer isso em outros países, com meu amigo, Denis Mukwege [ginecologista congolês que venceu o Nobel da Paz junto com Nadia em 2018 por seu trabalho de reabilitação de sobreviventes da violência sexual na República Democrática do Congo (RDC)]. Fundamos o Global Survivors Funds e fazemos campanha junto a governos para que eles estabeleçam legislações nesse sentido.

Lugares como RDC, Colômbia, Ucrânia deveriam ter reparações. Eu me reuni recentemente com a primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska, em Kiev. Lá, encontrei sobreviventes que me contaram os sacrifícios que estão fazendo. Pedi que a primeira-dama passasse uma mensagem a seu marido [o presidente Volodimir Zelenski] para que adotem uma lei semelhante à do Iraque para ajudar sobreviventes.

A senhora tem viajado para vários países do mundo e conversado com outros sobreviventes de violência sexual. Por que esse tipo de violência ainda é tão prevalente em conflitos?
Violência sexual é uma arma de guerra usada para destruir comunidades, famílias e o bem-estar das pessoas. Ela foi usada em conflitos ao longo da história, mas, antes, considerava-se a violência sexual um efeito colateral da guerra. Diziam aos sobreviventes que eles não deveriam falar sobre isso para ninguém, havia muito estigma e vergonha. É por isso que não vemos autores da violência sexual serem punidos, porque os sobreviventes tinham medo de falar. Especialmente de onde eu venho, no Iraque, há muito preconceito, e isso torna muito difícil os sobreviventes terem coragem de falar. Mas se você não compartilha sua história, você está protegendo os criminosos, porque eles não serão punidos.

Também há muito pouca atenção aos sobreviventes. A comunidade internacional formou uma coalizão e derrotou o EI militarmente, mas não fez nada para encontrar e trazer de volta as milhares de mulheres que ainda estavam no cativeiro, escravizadas pelo EI. Ainda há mais de 2.000 mulheres e crianças no cativeiro de extremistas do EI, incluindo meu sobrinho e minha sobrinha, minha cunhada e minha prima.

A última vez que tivemos notícias da minha cunhada e meus sobrinhos foi há cinco anos. Minha sobrinha tinha quatro semanas de vida quando foi sequestrada, e meu sobrinho, 11 anos.

Duas semanas atrás, conseguimos resgatar seis mulheres. Elas tinham sido traficadas do Iraque para a Síria e, depois, para a Turquia. Na maioria dos casos, o EI pede resgate de centenas, milhares de dólares pelas mulheres, e claro que os yazidis, vivendo em áreas rurais, não têm como pagar.

Como a senhora conseguiu ter coragem para contar a sua história?
Eu fui criada por uma mãe solteira com 11 filhos. Ela se divorciou, o que não era nada comum, trabalhou e conseguiu criar os 11 filhos sozinha. Quando contei minha história pela primeira vez, muitas pessoas disseram que eu deveria me calar. Meu irmão disse: "não fala, eu não tenho como te proteger aqui neste campo com 12 mil pessoas". Compartilhei minha história pela primeira vez pelo 60 Minutes [programa noticioso da TV americana], escondendo meu rosto. Mas logo ficou claro que eu não podia mais viver no Iraque e fui para a Alemanha, em 2015. Lá consegui falar mais livremente.

Deve ter sido muito difícil.
Se você tivesse deixado para trás tudo o que você ama... Minhas três sobrinhas estavam comigo no cativeiro, fomos separadas, eu escapei, elas ficaram lá e foram mortas. Minha mãe e meus irmãos foram assassinados. Quando compartilhei minha história, sabia que enfrentaria preconceito, mas também sabia que, sem falar sobre o que tinha acontecido, não seria possível resgatar pessoas e evitar que tudo isso se repetisse.

A senhora viaja o mundo falando sobre sua experiência, revivendo traumas. Como cuida da sua saúde mental?
Cada um lida de forma diferente com seus traumas. Eu tenho um propósito na vida. Acordo todos os dias e sei que preciso falar sobre isso, que é meu trabalho. Sei que consegui mudar as coisas, pelo menos um pouquinho. Ouvir as histórias de tantas outras mulheres me ajuda, é parte da recuperação, da cura. Mas o trauma nunca vai embora, ele está ali.

A senhora criou o Código Murad junto com a ONU, para ensinar jornalistas, investigadores a conversar com sobreviventes de violência sexual. Quais são os principais erros que nós, jornalistas, cometemos?
As pessoas não foram treinadas para conversar com sobreviventes, então cometem muitos erros. São pessoas traumatizadas, que passaram por muita coisa. Algumas perguntas muito pessoais deveriam ser evitadas, do tipo "o que você estava vestindo" ou "como você agiu exatamente". Você não precisa de todos esses detalhes para fazer uma reportagem correta.

[Também] é preciso estudar ao máximo a história de um sobrevivente antes de falar com ela ou ele, para não fazer as mesmas perguntas de sempre, que fazem as pessoas reviverem seus traumas.

A unidade da ONU que investiga crimes do EI chegou à conclusão de que o massacre contra a comunidade yazidi foi um genocídio. Mas, até agora, só dois extremistas foram julgados e condenados, em tribunais na Alemanha. Por que não houve mais punições?
Além da Alemanha, outros 18 países reconheceram o genocídio yazidis. Isso é muito importante, mas quais são os próximos passos? A ONU tem uma unidade coletando provas. Sabemos que milhares de estrangeiros se juntaram ao EI na Síria e no Iraque e cometeram crimes de genocídio e atos de violência sexual. Mas só dois foram punidos. No Iraque, houve outras punições, mas sem nenhuma transparência, e as vítimas não fora incluídas no processo.

Estamos pressionando outros países que têm jurisdição universal para que façam como a Alemanha. Sabemos que mais de cem cidadãos americanos se uniram ao EI, mas os EUA ainda não agiram. Já se passaram nove anos, nós temos milhares de documentos, evidências, e só duas pessoas foram condenadas. Responsabilização é essencial para mandar o recado para outros extremistas de que não, a impunidade não é uma opção.

Como a senhora encontra forças para continuar?
Eu não quero que nenhuma outra família, nenhuma outra mulher, passe pelo que eu passei, e acho que isso só pode ser evitado compartilhando a minha história. Não estou dizendo que é fácil. Nunca será —minha casa foi destruída, minha mãe e meus irmãos foram assassinados, tenho familiares que ainda estão em cativeiro, fui obrigada a fugir do meu país. Não é algo que eu sonhava fazer, foi algo que eu precisei fazer.

O EI ainda é uma ameaça?
Sua ideologia ainda é uma ameaça. Militarmente, pode não representar um perigo grande, mas sabemos que dezenas de milhares de pessoas que eram integrantes do EI estão por aí, impunes, provavelmente com a mesma ideologia que tinham.

Na primeira vez em que eu me reuni com a minha advogada, em 2016, ela me perguntou qual era meu maior medo. Disse a ela que era que todos esses extremistas simplesmente raspassem a barba e saíssem impunes andando por aí. E isso realmente aconteceu com milhares deles. Então [o EI] ainda é uma ameaça. Precisamos ter mais julgamentos, é preciso justiça.


Nadia Murad, 30

Nascida em Kojo, no norte do Iraque, venceu o Prêmio Nobel da Paz em 2018 e é embaixadora da ONU para a dignidade dos sobreviventes de tráfico humano. Ativista pelos direitos dos sobreviventes de violência sexual, é fundadora da ONG Nadia's Initiative, que ajuda membros da minoria religiosa yazidi a voltarem para sua região, Sinjar, destruída após genocídio cometido pelo EI no local em 2014.

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