Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Israel retraumatiza crianças sobre Holocausto e constrói figura do inimigo, diz ativista

Para Nurit Peled-Elhanan, professora da Universidade Hebraica de Jerusalém, crianças são educadas para um outro Holocausto

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Soldados de Israel durante treinamento nas Colinas de Golã Gil Eliyahu - 25.out.23/Reuters

São Paulo

A família da acadêmica e ativista israelense Nurit Peled-Elhanan, 74, é conhecida por uma trajetória de romper expectativas.

A professora da Universidade Hebraica de Jerusalém teve a filha adolescente assassinada em um atentado suicida cometido em 1997 por um homem palestino. Em vez de radicalizá-la, o episódio catapultou seu ativismo pela paz entre israelenses e palestinos.

Durante o luto pela morte da filha, ela declarou: "Minha menina foi morta só porque era israelense por um jovem oprimido e exasperado ao ponto de se suicidar e de cometer um assassínio, só porque era palestino. Ambos são vítimas da ocupação israelense da Palestina."

Antes dela, seu pai teve uma trajetória fora da curva. Mattityahu Peled, morto em 1995, ajudou a construir as Forças de Defesa de Israel. O major-general ganhou destaque na conquista da Faixa de Gaza em 1956, durante a Guerra de Suez, contra o Egito. Tamanho foi seu protagonismo que ele foi declarado governador militar do território.

Mas Motti enveredou para outro caminho. Começou uma militância pela paz, ingressou na política e se tornou uma figura conhecida da causa palestina e um amigo próximo de líderes árabes.

Professora de literatura comparada, Nurit Peled é autora de livros sobre a representação dos palestinos na educação israelense, um dos assuntos que aborda nesta entrevista à Folha. A israelense falou de sua casa em Jerusalém, local onde também nasceu, sobre a guerra Israel-Hamas, o prolongado conflito na região e as perspectivas para a paz.

A ação do Hamas no 7 de Outubro

Há duas partes. Primeiro, havia o, digamos, exército do Hamas, as pessoas treinadas para serem guerreiros. E eles fizeram um trabalho brilhante –do ponto de vista militar deles.

Mas as fronteiras estavam abertas. Não havia ninguém, porque o Exército [de Israel] foi transferido para a Cisjordânia, onde os colonos judeus estão perpetrando pogroms contra palestinos, e o Exército está lá para ajudá-los e protegê-los. Levou horas para o Exército chegar na fronteira de Gaza após os ataques, algo que não entendemos.

Depois da elite armada do Hamas, veio a multidão de pessoas que estavam enjauladas por anos. Provavelmente a maioria nasceu nesta prisão, e eles costumavam ver do outro lado da cerca essas aldeias prósperas nos kibutzim, com água, piscinas, festas. Em Gaza eles têm duas horas de água e eletricidade por dia, e a água é suja.

Isso gerou um ódio terrível. E foram eles que saquearam e mataram. Acho que a ideia do Hamas era sequestrar, não matar. Talvez eu esteja errada. Claro, eles mataram pessoas que se aproximaram deles para que pudessem continuar. Mas toda essa terrível crueldade veio da multidão que chegou depois. Quando você mantém as pessoas nessas condições por tantos anos, isso é o que acontece.

A resposta de Israel

O que Israel está fazendo com os palestinos não é menos violento. Os palestinos têm sofrido 75 anos de violência. Por que o grupo dominante é tão cruel com uma minoria, com seus vizinhos?

Há um tipo de fundamentalismo religioso relacionado à educação que israelenses recebem nas colônias. Assemelha-se muito aos Estados fascistas. E ao populismo: criam caos para que o líder venha como uma espécie de salvador. É um discurso que coloca grupos da população uns contra os outros, incitando a violência.

O que eles [Hamas] fizeram é uma resposta. Em termos de equilíbrio de poder, é ridículo dizer que Israel tenha que se defender do que os palestinos fazem com esses foguetes primitivos. Israel tinha que fazer algo para que isso não acontecesse e, ao contrário, faz tudo para que isso aconteça: você não pode sufocar as pessoas por tantos anos e não esperar por isso. É como ocorre com os mosquitos: você tem que cuidar do pântano, não matar os mosquitos o tempo todo.

O governo Netanyahu

Acredito que o que o governo tem em mente são eleições. Há anos, não apenas este governo, mas muitos anteriores, tentaram atrair o público para votar neles matando palestinos. Começou com Shimon Peres após o assassinato de Yitzhak Rabin [premiê assassinado em 1995 após fazer parte do Acordo de Oslo 1 –foi substituído por Shimon Peres]. Ele fez coisas horríveis no Líbano para agradar ao público.

A guerra é algo muito lucrativa para todos. Gaza é um laboratório para novos tipos e tipos ilegais de armas que os americanos querem testar. Há muitos interesses.

E Netanyahu se apresenta como o salvador. ‘Eu sou Napoleão, eu sou Taras Bulba [herói cossaco ucraniano que lutou pela Rússia contra a Polônia no romance homônimo de Nikolai Gogol]'. As pessoas querem vingança. Essa guerra radicalizou todo mundo, até mesmo o que é hoje chamado de esquerda sionista. Todo mundo se virou muito à direita, tornou-se vingativo.

Em poucos dias, judeus vão para a Esplanada das Mesquitas [local sagrado para muçulmanos e também para judeus que, nos últimos anos, assiste a episódios que muitas vezes terminam em violência contra palestinos]. Isso vai acender todo o fogo. Mas é isso que eles querem: que este lugar queime. E, das cinzas, vão reconstruir seu Estado talibã.

Uma lógica racista

Tudo está relacionado às pessoas que são vistas como sem valor. Neste caso, são os palestinos. Há 75 anos, eram os judeus. Ninguém foi salvar os judeus na Segunda Guerra. O que é chamado de mundo ocidental iluminado é governado pelo racismo. E, no racismo, alguns grupos de pessoas são considerados como ervas daninhas ruins. Ninguém se importa com quem são.

Na Alemanha nazista, se Albert Einstein fosse pego, teria sido enviado para as câmaras de gás. Quem se importa com o que ele sabe? E é a mesma coisa aqui: ninguém se importa com quem são os palestinos.

Eu tenho família nos kibutzim [atacados pelo Hamas]. Eles foram salvos, mas alguns amigos, não. Conheço muitas pessoas que foram mortas. E havia uma ativista pela paz muito conhecida, Vivian Silver, que há anos tem trabalhado com as pessoas de Gaza. Mas ela foi sequestrada. Porque é a mesma lógica: ‘Não nos importamos com quem você é. Você é judeu’.

A educação

As crianças em Israel são educadas para um outro Holocausto. São retraumatizados a partir dos 3 anos de idade com histórias horríveis. No último ano da escola, vão aos campos de extermínio e voltam cheias de nacionalismo e vingança. Mas a vingança não é contra os alemães, e sim contra os palestinos, como se tudo o que fizéssemos contra os palestinos fosse para impedir outro Holocausto.

É uma lógica de ‘ter medo de qualquer pessoa que não seja eu’. A forma como os judeus etíopes, árabes e palestinos são tratados está muito relacionada com essa visão do Holocausto.

Israel tem uma obsessão de ser ocidental. Precisa-se ter um inimigo eterno para justificar o que você faz quando se coloniza um lugar e depois trata a população como fazemos. E temos que tratar os palestinos como se fossem os exterminadores em potencial.

Nos livros escolares se diz que os judeus foram exterminados porque não tinham um Estado com um Exército forte. Isso começa após a guerra de 1973, quando Israel perde e há tantas baixas, e as pessoas começaram a duvidar se valia a pena dar sua vida por este lugar. Então, o sistema educacional decidiu fazer algo que os obrigasse a ficar em Israel e convencê-los de que o mundo inteiro é antissemita.

Israel é uma etnocracia, um regime onde um grupo étnico domina todos os outros, mas concede certos direitos pessoais aos outros, mas nenhum direito de grupo. São os judeus nascidos ou originários da Europa que dominam todos os outros.

Sem perspectiva para a paz

No momento, não vejo perspectiva.

A única coisa que poderia funcionar, ainda que ninguém esteja trabalhando por isso, é um Estado normal. O Estado de Israel não pertence aos cidadãos. Pertence ao povo judeu. Um judeu do Brasil tem mais direitos em Israel do que um cidadão árabe de Israel. Tem que ser um estado normal. Nem mesmo temos uma Constituição.

Seria um Estado de palestinos e israelenses, não religioso, não étnico. Yasser Arafat [líder palestino e Nobel da Paz morto em 2004] tinha um princípio que eu acho que funciona: quando uma cidade tiver maioria muçulmana, o prefeito deve ser cristão. Se a maioria for cristã, deve ser muçulmano. Eu gostaria de ver um premiê muçulmano.

Ser uma voz dissidente

A sociedade em geral não gosta dos meus discursos. Meus livros não são reconhecidos em Israel. Mas eu tenho alunos, e com alunos você pode fazer muitas coisas. Ninguém nunca saiu da aula [risos].

A vida do meu pai foi muito ameaçada quando ele começou sua amizade com Assad Saftawi [cofundador do Fatah, assassinado em 1993] e seus esforços pelos palestinos. Ele poderia ter sido um ministro, poderia ter sido qualquer coisa que quisesse, mas ele abraçou a sua verdade.

Para mim, o ponto de virada foi quando deixei Israel e fui estudar nos EUA e em Paris aos 19 anos. Aqui não tínhamos TV, não sabíamos nada sobre o mundo exterior. Fomos muito doutrinados. Acho que Israel é um lugar muito ruim para criar filhos. Até acho irresponsável criar crianças neste lugar.

Nurit Peled-Elhanan, acadêmica e ativista israelense - Reprodução/TV Boitempo no YouTube

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