Descrição de chapéu China

Prevalência de trabalho forçado mancha fornecimento mundial de produtos marinhos

Jornadas em muitos navios chineses em mar aberto duram comumente 15 horas, seis dias por semana

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Oceano Atlântico

Esta reportagem foi produzida pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização jornalística sem fins lucrativos de Washington. A apuração e a escrita contam com contribuições de Ian Urbina, Joe Galvin, Maya Martin, Susan Ryan, Daniel Murphy e Austin Brush, e a produção da reportagem recebeu apoio do Pulitzer Center.

Nos últimos quatro anos, uma equipe de repórteres do The Outlaw Ocean Project conduziu uma ampla investigação das condições trabalhistas, abusos de direitos humanos e crimes ambientais na cadeia mundial de fornecimento de produtos marinhos. Uma vez que a frota pesqueira de águas distantes da China é enorme, amplamente dispersa e reconhecida pela sua brutalidade, a investigação focou essa frota.

Os repórteres entrevistaram capitães e subiram a bordo de navios no sul do oceano Pacífico, perto das Ilhas Galápagos; no sul do oceano Atlântico, perto da Argentina; na costa da África Ocidental, perto da Gâmbia; e no mar do Japão, próximo à Coreia do Sul.

Navio de pesca de lula Fu Yuan Yu 7619 perto de Galápagos
Navio de pesca de lula Fu Yuan Yu 7619 perto de Galápagos - Ben Blankenship - 9.jul.22/The Outlaw Ocean Project

As visitas a esses navios revelaram em detalhes um amplo padrão de abusos de direitos humanos e trabalhistas, incluindo servidão por dívida, retenção de salários, horas excessivas de trabalho, espancamento, confisco de passaportes, proibição de acesso a atendimento médico em tempo hábil e mortes causadas por violência.

As jornadas de trabalho em muitos navios chineses em mar aberto duram comumente 15 horas, seis dias por semana. Os alojamentos da tripulação ficam abarrotados. Lesões, má alimentação, doenças e espancamentos são comuns –assim como o beribéri, que foi um dos primeiros sinais de problemas observados pelos repórteres ao longo de muitos encontros.

Em fevereiro de 2022, em uma viagem a bordo da embarcação Sam Simon, da Sea Shepherd —organização que trabalha pela preservação dos oceanos— os jornalistas foram convidados a subir a bordo de navio pesqueiro chinês no Agujero Azul, uma área extremamente rica para pesca de lulas em alto mar no Atlântico Sul, perto da Argentina. O capitão da embarcação permitiu que os repórteres circulassem livremente desde que não mencionassem o nome dele ou do navio.

Na pesca de lulas, o trabalho mais pesado ocorre à noite. Os navios têm centenas de lâmpadas do tamanho de bolas de boliche penduradas em ambos os lados do convés, com a finalidade de atrair as lulas das profundezas.

À medida que elas são coletadas, a cena no convés se assemelha muitas vezes a uma oficina de automóveis bem iluminada onde uma troca de óleo deu completamente errado. Quando puxadas para bordo, as lulas esguicham uma tinta escura. Quente e viscosa, a tinta forma coágulos em poucos minutos e cobre todas as superfícies com uma gosma escorregadia.

O navio em que os jornalistas subiram tinha cerca de 50 carretéis automáticos que puxavam linhas com iscas penduradas em cada lado. Os membros da tripulação eram responsáveis por monitorar dois ou três carretéis de cada vez, para garantir que não travassem.

Os dentes dos homens estavam amarelados por fumarem compulsivamente; a pele era de uma palidez doentia; as mãos estavam rasgadas em razão do equipamento cortante, e com aparência esponjosa em decorrência da umidade permanente. A maioria tinha o olhar perdido no horizonte enquanto cuidava de seus equipamentos.

Dois marinheiros chineses conversaram com os jornalistas enquanto cuidavam de seus carretéis. Um tinha 28 anos, o outro 18. Era a primeira vez dos dois no mar, e eles haviam assinado contratos de dois anos. Eles ganhavam em média R$ 50 mil (R$ 250 mil) por ano, mas, se faltassem a um dia de trabalho por motivo de doença ou lesão, tinham três dias de pagamento descontados.

Embora o capitão tenha ficado na ponte de comando, os jornalistas não transitavam de maneira completamente livre, tendo um funcionário ao seu lado. Em determinado momento, o funcionário foi chamado, e o marinheiro mais velho disse a um dos repórteres que ele estava ali contra a sua vontade.

"É impossível ser feliz," ele disse. "A gente não liga para nada porque não queremos estar aqui, mas somos obrigados." Ele estima que 80% dos outros marinheiros também deixariam o navio se pudesse. "É como estar isolado do mundo e da vida moderna."

Nervoso, o marinheiro mais novo levou um repórter até um corredor escuro para sussurrar um pedido de socorro. "Nossos passaportes foram confiscados," disse ele. "E não vão nos devolver."

Em vez de continuar sua fala, ele começou a digitar uma mensagem no celular por medo de ser ouvido. "Não posso falar muito agora, já que ainda preciso trabalhar na embarcação; se eu der muita informação, posso acabar criando problemas a bordo", escreveu. "Por favor, entre em contato com a minha família," acrescentou antes de terminar abruptamente a conversa diante do retorno do vigia.

Os depoimentos de marinheiros mantidos em regime de trabalho análogo à escravidão nessas embarcações não são um caso isolado: recentemente, em junho de 2023, uma garrafa foi levada pela maré até uma praia próxima a Maldonado, no Uruguai.

Dentro havia a mensagem de um marinheiro angustiado em um navio chinês que também pescava lulas: "Olá, eu sou membro da tripulação do navio Lu Qing Yuan Yu 765, e a empresa me prendeu aqui. Quando vir esta mensagem, por favor, me ajude a ligar para a polícia!" Questionada, a proprietária do navio, a empresa Qingdao Songhai Fishery, disse que as acusações foram inventadas pelos membros da tripulação.

Essa situação não é recente e não se limita apenas a marinheiros chineses. A investigação conduzida pelo The Outlaw Ocean Project documenta desde 2019 casos em que tripulantes indonésios de navios chineses foram submetidos a trabalho forçado. Alguns deles perderam a vida devido a doenças facilmente tratasas porque os capitães se recusaram a levá-los de volta ao continente para receber tratamento.

A natureza opaca e global das cadeias de fornecimento de produtos marinhos faz, porém, com que poucas empresas rastreiem de fato a origem deles ou as condições dos navios responsáveis por sua pesca.

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