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Lydia Polgreen

Imagens de crianças mortas são evitadas em jornais, mas esta em Gaza precisa ser vista

Quando a imprensa escolhe publicar fotografias como esta, elas podem ser mobilizadoras

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Lydia Polgreen

Colunista do jornal The New York Times, apresenta o podcast "Matter of Opinion"

Se você não olhar com muita atenção, pode pensar que a fotografia é uma imagem mal iluminada de uma festa do pijama ou de uma viagem de acampamento em família. Seis crianças pequenas estão deitadas em uma fileira, com suas cabeças aparecendo por baixo do lençol branco que está casualmente sobre seus peitos. Nenhuma parece ter mais de 10 anos, embora seja difícil dizer com certeza.

Inicialmente, você pode não reparar na mancha de sangue seco no canto superior direito da imagem. Mas então você percebe, e aí é impossível não ver, que parece estar faltando um pedaço do crânio de uma das crianças, a segunda da esquerda para a direita. Quando você olha, agora, com toda a sua atenção, o horror desse quadro toma forma, e você vê que apenas uma criança —uma menina com um rabo de cavalo, provavelmente com 8 ou 9 anos— parece estar dormindo. Sua cabeça está virada ligeiramente, como se estivesse sussurrando algo para a menina ao lado dela.

Os corpos de crianças mortas no necrotério do hospital al-Aqsa, em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza
Os corpos de crianças mortas no necrotério do hospital al-Aqsa, em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza - Mahmud Hams - 22.out.23/AFP

A legenda original é sucinta: "Os corpos de crianças mortas em um ataque israelense estão no chão do necrotério do hospital al-Aqsa, em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza central, em 22 de outubro de 2023, enquanto as batalhas continuam entre Israel e o grupo palestino Hamas". A legenda é da agência France Presse (AFP); a foto é de Mahmud Hams, um fotógrafo da equipe da agência no local.

As crianças não são nomeadas. A fotografia não nos diz se essas crianças estão de alguma forma relacionadas entre si. Tudo o que sabemos é que elas são seis das mais de 4.500 crianças que foram mortas em Gaza, de acordo com o Ministério da Saúde local, desde que Israel iniciou sua campanha militar em resposta ao brutal ataque do Hamas no dia 7 de outubro. Naquele dia, combatentes do Hamas mataram 1.200 pessoas, muitas delas crianças. Acredita-se que centenas de reféns israelenses, incluindo crianças, estejam detidos em Gaza pelo grupo terrorista, suas famílias desesperadas por sua libertação.

Esta fotografia não foi publicada por uma organização de notícias mainstream, até onde posso dizer. Devido a sua natureza explícita, o New York Times decidiu não publicá-la na íntegra. É algo raro para empresas jornalísticas publicarem imagens explícitas de crianças mortas ou feridas. E com razão. Não há nada tão devastador quanto a imagem de uma criança cuja vida foi ceifada pela violência sem sentido. As normas de longa data são mostrar tais imagens com parcimônia, se é que as mostram.

É claro que jornais e sites de notícias não precisam mais publicar uma imagem para que ela seja vista. As redes sociais nos bombardeiam com uma enxurrada de imagens brutais. E em uma longa carreira de reportagem que me levou a muitas zonas de guerra, vi mais do que minha cota de morte na vida real. Fui a esses lugares porque acredito profundamente em testemunhar todas as facetas da experiência humana, incluindo a guerra e o sofrimento. Uma das partes mais difíceis do jornalismo é testemunhar o horror e depois tentar, em palavras, som e imagem, transmitir essa dor ao mundo. Muitas pessoas podem querer desviar o olhar, ver o mundo como preferem vê-lo. Mas o que devemos ver quando vemos a guerra? O que a guerra exige que todos nós vejamos e entendamos? Com base em minha experiência em zonas de guerra, é algo raro uma imagem violenta me fazer parar para olhá-la. Mas acredito que esta é uma imagem que exige ser vista.

Quando jornais escolhem publicar essas imagens, elas podem ser mobilizadoras. A mãe de Emmett Till insistiu que seu corpo brutalizado fosse fotografado para que o mundo fosse obrigado a testemunhar seu linchamento no Estados Unidos. A fotografia de Kim Phuc Phan Thi, a criança gritando queimada por napalm capturada na imagem indelével de Nick Ut, muitas vezes foi creditada por ajudar a mudar o sentimento geral contra a guerra no Vietnã, embora essa mudança já tivesse começado. Em 2015, o corpo sem vida de Aylan Kurdi, uma criança síria, foi fotografado em uma praia turca. Ele havia se afogado, junto com sua mãe, ao tentar navegar da Turquia para a Europa. A imagem trouxe uma enxurrada de atenção e doações para as vítimas da guerra civil na Síria e, por um tempo, pode ter amolecido corações que desde então se endureceram novamente diante da situação dos refugiados em busca de segurança contra a guerra e a opressão.

Assim como muitas pessoas, tenho lutado para compreender a escala e a devastação do conflito que está ocorrendo agora em Gaza. O ataque hediondo do Hamas a Israel foi um ato de brutalidade e crueldade implacáveis que os assassinos transmitiram ao vivo. Israel respondeu com uma campanha de bombardeios em Gaza que "se tornou uma das mais intensas do século 21, provocando um crescente escrutínio global de sua escala, propósito e custo para a vida humana", relatou o jornal The New York Times.

Foi talvez apropriado que a crise em Gaza e Israel tenha sido empurrada do topo da agenda de notícias americana, ainda que brevemente, por um tiroteio no Maine. A história foi tão terrível em sua familiaridade. O atirador era conhecido pelas autoridades. Os avisos sobre ele foram ignorados. Ele, é claro, tinha acesso irrestrito a máquinas que matam. Em seu ataque, ele matou 18 pessoas, incluindo Aaron Young, de 14 anos, um apaixonado jogador de boliche que foi morto a tiros junto com seu pai enquanto participava de um jogo da liga juvenil.

Não vemos imagens explícitas de crianças americanas mortas em tiroteios em massa, em parte porque os fotojornalistas geralmente não têm acesso a essas cenas horríveis, e as autoridades não divulgam fotos da cena do crime. Muitas vezes substituímos isso por imagens de angústia materna. E, assim, o massacre em Maine me lembrou de outra imagem de Gaza, que você pode ter visto nas redes sociais. Nela, uma figura feminina embala o corpo de uma criança envolto em um pano branco. A fotografia não mostra rostos —na verdade, a única indicação de pele humana é a mão da mulher, que segura a cabeça da criança. A cabeça da mulher está coberta com um lenço, uma prática que em diferentes momentos e lugares da história foi compartilhada por mulheres devotas de todas as religiões abraâmicas. A legenda original da Reuters nos disse pouco: "Uma mulher abraça o corpo de uma criança palestina morta em ataques israelenses, em um hospital em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza." Foi tirada por um fotógrafo da Reuters em Gaza chamado Mohammed Salem.

Mulher abraça corpo de criança morta em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, em meio bombardeios israelenses no território
Mulher abraça corpo de criança morta em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, em meio bombardeios israelenses no território - Mohammed Salem - 17.out.23/Reuters

Mais tarde, a Reuters informou que a mulher, Inas Abu Maamar, estava segurando o corpo de sua sobrinha de 5 anos, Saly. Mas a imagem não precisa de palavras, rostos ou nomes para transmitir, inevitavelmente, uma dor profunda e universal. A imagem imediatamente lembra uma das obras de arte mais famosas do mundo: "La Pietà" de Michelangelo. A escultura de mármore retrata Maria segurando o corpo inerte de Jesus depois que ele é retirado da cruz. É o símbolo máximo da dor materna, do sacrifício de uma criança para um mundo cruel. Em sua agonia, ela poderia ser qualquer mãe, lamentando qualquer criança roubada cedo demais, em qualquer lugar do mundo.

E, assim, peço que você olhe para essas crianças. Elas não estão dormindo. Elas estão mortas. Elas não farão parte do futuro. Mas saiba disso: as crianças na foto do necrotério poderiam ser qualquer criança. Elas poderiam ser crianças sudanesas presas no fogo cruzado entre dois generais em conflito em Cartum. Elas poderiam ser crianças sírias esmagadas pelas bombas de Bashar al-Assad. Elas poderiam ser crianças turcas que morreram em suas camas quando um prédio de apartamentos mal construído desabou sobre elas em um terremoto. Elas poderiam ser crianças ucranianas mortas por bombardeios russos. Elas poderiam ser crianças israelenses massacradas em um kibutz pelo Hamas. Elas poderiam ser crianças americanas mortas a tiros em um tiroteio. Essas crianças são nossas.

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