Israel tem o direito de se defender, mas até isso tem limites, diz Bachelet

Duas vezes presidente do Chile e ex-alta comissária para direitos humanos da ONU defende que Tel Aviv comete crimes de guerra

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Brasília

Presidente do Chile por dois mandatos e ex-alta comissária para os Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet diz à Folha que Israel ultrapassou claramente regras do direito humanitário com sua reação aos ataques terroristas perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro.

A ex-presidente do Chile Michelle Bachelet durante sessão do Club de Madrid, associação que reúne ex-dirigentes de diversos países, em Brasília - Pedro Ladeira - 14.nov.23/Folhapress

Questionada sobre as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que afirmou que tanto o Hamas quanto Israel cometeram atos de terrorismo, Bachelet disse preferir o vocabulário da legislação internacional para descrever os episódios em razão de sua experiência na ONU. "Uso o termo crimes de guerra."

Bachelet concedeu a entrevista em Brasília, durante sessões do Club de Madrid, associação que reúne ex-presidentes e ex-primeiros-ministros de diferentes países. Ela disse que não comentaria o processo de referendo da nova Constituição no Chile porque ainda não se manifestou sobre o tema em seu próprio país.

No período em que a sra. foi presidente do Chile, Cristina Kirchner ocupou o poder na Argentina, e Dilma Rousseff, no Brasil. Hoje, na América do Sul, apenas o Peru é governado por uma mulher. Há um retrocesso na representatividade das mulheres na política?
O que notamos no geral é um retrocesso em um conjunto de áreas vinculadas à participação política das mulheres, mas de forma mais geral com os direitos das mulheres. A participação política das mulheres diminuiu quando vemos o número de chefes de Estado e de governo no mundo. A proporção de mulheres nos Parlamentos [nacionais] alcançou 26,5% no início de 2023, o que significa uma leve alta de 4,2 pontos porcentuais desde 2015. Não é muito, porque no fundo é 0,5 [ponto] anual. Se essa tendência se mantiver, precisaremos de mais de quatro décadas para conseguir a igualdade de gênero nos Parlamentos.

Isso mostra que, apesar das leis de cotas que melhoraram a representação, ainda há diversos obstáculos para que as mulheres decidam participar da política. Entre eles, o fato de que uma mulher tem que escolher entre a sua vida privada, digamos, e sua vida pública. A mulher que se mete com política é muitas vezes castigada socialmente, porque é acusada de abandonar a família e os filhos. Os homens que se metem com política jamais recebem o mesmo tipo de acusação.

Quais políticas podem ser adotadas?
É preciso mais leis de cotas. Porque elas permitem que essas mulheres eleitas sejam vistas como modelos para que outras mulheres passem a participar da política. Segundo, é preciso trabalhar contra todos os obstáculos que as mulheres enfrentam para participar da política. É preciso apoiar a existência de salas de maternidade, se elas têm filhos pequenos, creches, além de outros tipos de redes de apoio.

Além disso, é preciso seguir trabalhando para assegurar que os partidos políticos reconheçam a importância das mulheres na política. Ou seja: que nos próprios partidos as mulheres estejam em cargos de direção, o que permite a elas impulsionar determinadas políticas de igualdade de gênero.

A América do Sul tem hoje um conjunto de líderes de ultradireita que praticam revisionismo histórico em relação às ditaduras militares no continente. Alguns exemplos são Bolsonaro, Javier Milei (Argentina) e José Antonio Kast (Chile). As direitas tradicionais estão sendo substituídas por forças radicalizadas?
Eu vejo [isso] como um fenômeno mundial. Houve uma irrupção de partidos e movimentos de extrema direita —que surgem dos partidos de direita e se radicalizam até a extrema direita. Isso é visível no Vox na Espanha; na AfD na Alemanha; no governo de Giorgia Meloni [na Itália]; no movimento de Marine Le Pen [na França]. Vemos o mesmo na América Latina, nos casos que você mencionou.

Acredito que existe uma tendência em direção à ultradireita, o que me preocupa muito. A direita mais democrática começa a radicalizar suas posturas por medo de ser ultrapassada por esses movimentos [de extrema direita] e terminar sem eleitores. Acho que é um grande risco para a democracia.

Há estudos que demonstram que os jovens na América Latina, na sua grande maioria, ainda acreditam na democracia, mas um grupo crescente de pessoas manifesta um descontentamento com ela e com a política.

Cada vez mais há jovens que dizem que um governo autoritário, se eficiente, seria bem-vindo. No meu país, há uma quantidade importante de jovens que dizem que [o general Augusto] Pinochet foi o melhor governante do Chile. Eles não tinham nascido na época da ditadura, não viveram o que ocorreu.

Em 2019, quando a sra. era alta comissária para direitos humanos da ONU, Bolsonaro fez declarações atacando seu pai, que foi torturado e morto pela ditadura de Pinochet. Como recebeu aquela fala?
Eu não ofendi nem insultei [Bolsonaro]. Aquilo me pareceu muito chocante, que ele tenha, sem me conhecer… ele podia ter a opinião que quisesse sobre mim, mas não é algo próprio de um presidente referir-se dessa maneira a uma colega.

Aprendi uma coisa, não sei como se diz em português. Quando alguém é presidente, não pode permitir a si mesmo "gustitos" [expressão em espanhol que pode ser traduzida como agir a seu bel-prazer], você representa mais do que a si mesmo. Você está representando um país, não é um lutador de boxe.

O Alto Comissariado de direitos humanos atua no conflito israelo-palestino, entre outros temas. Qual é a sua avaliação sobre a eclosão da guerra entre Israel e o Hamas?
Primeiro, é totalmente condenável o que o Hamas fez, esse massacre. O sequestro também é uma prática que viola o direito internacional e humanitário.

Israel tem o direito de se defender, mas até esse direito tem limites. Há regras claras na guerra, regras internacionais de direitos humanos e de direito humanitário, que claramente foram ultrapassadas completamente com a resposta [de Tel Aviv] sobre Gaza.

Meu sucessor no Alto Comissariado [para direitos humanos da ONU, Volker Türk] assinalou com clareza que tanto o Hamas quanto Israel cometeram crimes de guerra. Todos nós estamos horrorizados de ver o que isso tem significado em termos de mortes. Lamentavelmente, nas guerras as vítimas fundamentais são mulheres e crianças, não os combatentes.

Sinto que é urgente um cessar-fogo. Não sei qual é o futuro de Gaza; quando vemos as imagens, os edifícios estão completamente destruídos. Na prática, o que está ocorrendo é que estão morrendo civis. É uma tragédia que me causa muita tristeza e desalento pela incapacidade do sistema multilateral de dar resposta a uma crise tão grave.

O presidente Lula disse que o Hamas e Israel cometeram atos de terrorismo. A sra. concorda?
Tendo sido alta comissária, minha tendência é usar a nomenclatura que se usa na legislação internacional. Por isso, uso o termo crimes de guerra.

Práticas tipificadas como crime de guerra

De acordo com o Estatuto de Roma e as Convenções de Genebra

  • Contra civis e hospitais

    Atacar intencionalmente a população civil ou propriedades que não sejam militares; causar danos que signifiquem consequências ambientais ou de saúde duradouras; deportar ou transferir de maneira forçada a população do território ocupado para outro lugar; destruir construções de saúde, religiosas, educacionais ou científicas; obrigar civis a servirem contra seu próprio país; praticar estupro, escravização sexual, prostituição forçada

  • Contra prisioneiros de guerra

    Obrigá-los a servir nas tropas do país em conflito com o seu; privá-los intencionalmente de direito a um julgamento justo; matar ou ferir um combatente que, tendo deposto as armas, rendeu-se

  • Contra pessoal e comboios humanitários

    Ataques direcionados intencionalmente contra pessoas, instalações, materiais, unidades ou veículos envolvidos em uma ação humanitária de assistência ou manutenção da paz

  • Uso de armas

    Emprego de armas de destruição em massa ou que causem sofrimento injustificado, como as de envenenamento, químicas e biológicas

Há muitas críticas sobre a falta de efetividade da ONU diante de crises como a do Oriente Médio. Como manter a organização relevante se ela muitas vezes parece paralisada?
Compartilho totalmente o que ressaltou outro dia o ministro [brasileiro das Relações Exteriores] Mauro Vieira. Há tempos que o mundo não desenvolvido levanta a necessidade de uma reforma do Conselho de Segurança. Por causa do [direito a] veto dos cinco países [que são membros permanentes], ele há tempos não é capaz de dar respostas com a urgência devida.

Vejo duas coisas como necessárias: reformar o Conselho para incorporar outros países, porque a composição atual é do pós-guerra, quando havia uma correlação de forças e de representação muito diferentes; e eliminar o [direito ao] veto. É uma tarefa que os países do Sul estão há anos tentando [completar] e não houve resultado. [O veto] faz com que se paralise o Conselho de Segurança e não se possa avançar.

A sra. foi a primeira presidente da Unasul. Hoje, os países da região não chegaram a um acordo para reativar esse mecanismo. A integração regional fracassou?
Acredito que [a coincidência ideológica que existia no passado entre os países] facilitava, porque havia mais interesse na integração. O que ocorreu com a Unasul é que em determinado momento ela perdeu força, quando muitos governos mudaram de coloração política em meio ao conflito na Venezuela. Começou-se a gerar em muitos governos a percepção de que a Unasul, porque a Venezuela estava incluída, não podia mais seguir funcionando. Nisso há uma decisão política de vários governos. A sede da Unasul ia ser o edifício do Itamaraty no Rio de Janeiro, mas mudaram muitas coisas e ela terminou em Quito —hoje em dia o edifício não está operando.

Estou convencida de que, exceto por Brasil e México, os países da região são relativamente pequenos. Alguns podem ter força importante em certas áreas, mas a única possibilidade para que nos escutem é que haja uma unidade entre nós ao redor, ao menos, de temas elementais. Isso faz a integração fundamental.


RAIO-X | Michelle Bachelet, 72

Presidente do Chile em duas ocasiões (2006-10 e 2014-18), foi a primeira mulher a liderar o país. Também foi ministra da Saúde e da Defesa. Exilou-se na Alemanha Oriental durante a ditadura de Pinochet (1973-1990) e retornou ao país em 1979. Foi ainda alta comissária para direitos humanos da ONU de 2018 a 2022.

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