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Deportação de líder católico na Nicarágua é novo capítulo de rixa entre Ortega e Igreja

Bispo Rolando Álvarez e outros 18 clérigos presos em onda de detenções do final de 2023 são enviados para o Vaticano

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São Paulo

O mais proeminente preso político da ditadura da Nicarágua, o bispo Rolando Álvarez, foi libertado e deportado para o Vaticano no domingo (14), mais de 500 dias depois de ser detido por se opor ao regime de Daniel Ortega.

Junto com ele, foram expulsos do país centro-americano outros 18 religiosos que haviam sido presos entre as festas de Natal e Ano-Novo do ano passado, na mais recente onda de detenções promovida pela ditadura.

Rolando Álvarez, bispo nicaraguense, em frente a uma igreja católica em Manágua - 20.mai.2022/Reuters

Em comunicado, o regime agradeceu "profundamente ao Santo Padre, o papa Francisco, [...] pela coordenação muito respeitosa e discreta que possibilitou a viagem ao Vaticano de dois bispos, 15 padres e dois seminaristas".

Embora tenha sido chamada de "viagem" pelo regime, a transferência dos religiosos é, na prática, uma deportação. Em fevereiro, quando estava preso há mais de seis meses, Álvarez foi condenado a mais de 26 anos de prisão por supostos crimes de conspiração e propagação de notícias falsas e perdeu sua cidadania nicaraguense por ser considerado um "traidor da pátria".

A notícia da expulsão teve um sabor agridoce para os críticos do regime —por um lado, houve comemoração pela libertação dos presos e, por outro, pesar pelo exílio forçado. "O regime continuará desmantelando a igreja. Qualquer um que os incomode será preso e depois expulso", afirmou no X a ex-guerrilheira Dora María Téllez, deportada em fevereiro do ano passado.

Desde 2018, quando manifestações massivas contra uma reforma da Previdência fizeram Ortega radicalizar sua gestão, 740 ataques foram desferidos contra igrejas na Nicarágua, e 176 sacerdotes foram expulsos, deportados ou proibidos de entrar no país, diz a advogada Martha Molina. Dos Estados Unidos, onde está exilada, a nicaraguense reúne informações sobre as ofensivas feitas contra a igreja nos últimos cinco anos.

Quando falou com a Folha, antes da deportação dos religiosos, Molina acompanhava apreensiva o desenrolar das detenções de dezembro. "Eles não cometeram crimes em flagrante para serem presos, e tampouco há ordem judicial", afirmou a advogada. "Eles simplesmente desaparecem, ninguém fica sabendo onde estão."

A repressão acaba afetando as práticas religiosas —em abril, por exemplo, quando as últimas marchas contra o regime completaram cinco anos, Ortega restringiu procissões da Semana Santa. Apesar disso, há quem defenda que não há uma perseguição religiosa no país.

"Esse conceito deve ser aplicado às perseguições que ocorrem por causa das crenças, da fé, dos conceitos de divindade das pessoas", afirma o nicaraguense Andrés Pérez-Baltodano, professor de ciência política na Western University, em London, no Canadá. "O que há na Nicarágua é uma perseguição política feroz contra qualquer pessoa que se oponha ou critique o regime."

Para explicar seu ponto de vista, o pesquisador afirma que todos esses religiosos continuariam sofrendo perseguição se virassem ateus de um dia para o outro, mas continuassem se opondo ao regime. Prova disso, continua ele, é que a repressão respingou até mesmo no Miss Universo do ano passado.

Na ocasião, a população tomou as ruas com a bandeira da Nicarágua, símbolo dos protestos de 2018, e viu uma conterrânea que participou das manifestações contra o regime vencer o concurso —o que fez seu retorno ao país ficar em xeque. "Isso não aconteceu porque o orteguismo tem um problema fundamental com o Miss Universo. O temor é que as pessoas se reúnam. Querem proibir as pessoas de se aglomerarem", afirma o especialista.

Ele mesmo um crítico da ditadura, Pérez-Baltodano, que estuda religião na América Latina, afirma estar "profundamente preocupado" com o que considera uma confusão conceitual em relação ao que se passa na Nicarágua.

Os ataques despertaram a indignação de religiosos em várias partes do mundo. Na última missa de 2023, por exemplo, o padre Júlio Lancellotti, conhecido principalmente por seu trabalho junto à população de rua de São Paulo, manifestou pesar pela prisão dos líderes religiosos.

"Que a ditadura nicaraguense liberte os presos políticos e não seja covarde de prender bispos, padres e seminaristas, não queira uma igreja vassala. A igreja sempre tem que ter a liberdade de caminhar e de anunciar a boa notícia do evangelho", afirmou Lancellotti.

O regime já havia tentado se livrar de seu mais notório opositor em outras ocasiões. Em uma delas, no início do ano passado, o bispo Rolando Álvarez se negou a subir em um avião rumo aos Estados Unidos no qual embarcaram 222 presos políticos que também perderam suas nacionalidades. Meses depois, em julho, ele chegou a ser libertado por dois dias em meio a negociações entre o regime e o Vaticano que também teriam fracassado, segundo a mídia local.

Desta vez, não ficou claro em que termos aconteceram as negociações entre a Nicarágua e a Igreja Católica. O tom do comunicado emitido pelo regime no domingo é, de todo modo, bem diferente do adotado entre as duas partes nos últimos anos.

O ponto de não retorno na relação entre as partes ocorreu durante as manifestações de 2018. Na época, a repressão aos ativistas, que deixou 355 mortos segundo a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), fez o Vaticano cancelar as negociações que tentavam dar fim à crise com o regime.

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