Brasileiros que fugiram do Haiti relatam muitos tiros e corpos queimados nas ruas

Grupo de sete pessoas, a maioria voluntários de missões religiosas, foi levado pelo Itamaraty à República Dominicana

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Buenos Aires

"Dormíamos em cima de uma enfermaria onde todos os dias chegavam feridos com tiros. E muitos perdiam a vida. A população se juntava quando alguém falecia. Quando escutávamos um grito, sabíamos que alguém havia morrido", relata Lucas Santana, 23.

Voluntário da Missão Belém, organização religiosa que desde 2010 atua em Wharf Jeremi, em uma das áreas de maior violência no Haiti, ele foi um dos sete brasileiros retirados do país na quarta-feira (10), de helicóptero, rumo à vizinha República Dominicana.

Pessoas olham e tiram fotos de corpo de homem morto após confronto entre gangues em Porto Príncipe
Pessoas olham e tiram fotos de corpo de homem morto após confronto entre gangues em Porto Príncipe - Ralph Tedy Erol - 1º.abr.24/Reuters

Com o principal aeroporto inoperante devido à violência das gangues e com a fronteira terrestre com o único país vizinho fechada por atritos recentes, o Haiti vive situação semelhante à de um país sitiado.

A operação organizada pelo Itamaraty demandou negociações com um Estado praticamente falido, do lado haitiano, e com Santo Domingo.

Como o depoimento de Santana, natural da zona sul de São Paulo, os relatos de outros brasileiros retirados nessa missão retratam o drama humanitário que se desenrola no Haiti.

"A maior parte das casas é construída de lata, não tem uma estrutura que proteja. Elas estão sem proteção no meio dos tiroteios, do fogo cruzado das gangues", descreve o cearense José Leonildo, 51.

Também voluntário da Missão Belém, Leonildo estava pela terceira vez no Haiti. Sua mão de obra ajudava a erguer um hospital que a organização religiosa tenta construir junto à escola que já possui. Lucas Santana e também Leandro Dantas, 24, outro brasileiro retirado do país, trabalhavam nas partes elétrica e eletrônica do projeto.

"Na penúltima e na última vez que estive lá, presenciei corpos de pessoas sendo queimados na rua com pneus", diz Leonildo, referindo-se a uma prática que tem se tornado comum no país, onde gangues disputam território e atualmente controlam mais de 80% da capital.

Os três haviam desembarcado em Porto Príncipe em janeiro e tinham passagem de volta comprada para o dia 10 de março, justamente poucos dias após grupos armados invadirem o aeroporto e as companhias aéreas pararem de operar, uma vez que não podem garantir a segurança de passageiros e de tripulantes.

Quando a embaixada do Brasil ofertou aos quase 70 brasileiros no país a possibilidade de retirá-los dali, o trio aceitou. Uma vez na República Dominicana, os três embarcaram rumo a Guarulhos nesta quinta (11).

Suas preocupações só aumentavam. Além da violência, havia o fato de que água e alimentos começavam a escassear. Cerca de 3.000 crianças estão cadastradas no projeto da missão e recebem refeições no local. Hoje, a fome atinge 50% da população haitiana, aponta a ONU.

Para Priscila Jodas Pyrhus, 39, que também deixou o país no helicóptero viabilizado pelo Brasil, partir dali foi um alívio e uma angústia. Seu marido é haitiano e não pôde deixar o país com ela, uma vez que a República Dominicana tem nos últimos meses impedido a entrada de cidadãos da nação vizinha, mesmo aqueles que têm visto.

Natural de São Bernardo do Campo (SP), ela foi ao Haiti pela primeira vez em 2017, junto com uma missão batista. Conheceu o marido, manteve contato à distância e voltou em 2019 para viver. Hoje leciona inglês e literatura em uma escola cristã americana.

Pyrhus vivia na comuna de Delmas, relativamente menos afetada pelas gangues. Diz que às vezes se sentia numa bolha, mas nem por isso deixou de ser impactada. "Duas vezes sofremos com bombas de gás lacrimogêneo, que entraram na escola e deixaram as crianças desesperadas."

"Nós, estrangeiros, temos a possibilidade de sair do país, mas aqueles que ficam continuam sofrendo e não tendo para onde correr", afirma. "Com portos e aeroportos fechados, o preço das coisas subiu muito, e já está começando a ter escassez, o que pode aumentar a fome num país que já é miserável."

O conjunto de crises sociais, políticas e econômicas no Haiti, que parecia ter observado seu ápice com o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, em sua casa, se agravou em março passado, com a renúncia do premiê Ariel Henry.

Num Estado acéfalo, as dezenas de grupos políticos do país caribenho tentam negociar a criação de um governo de transição para dialogar com parceiros externos e conseguir receber ajuda de uma missão multinacional para colaborar com sua polícia.

Outro dos que compunham a leva de brasileiros retirados é o frei Aldir Crocoli, da ordem dos capuchinhos, que desde 2014 estava no Haiti e vivia no no município de Tabarre, sob violência crescente.

Há duas semanas, em uma troca de mensagens com a reportagem, ele relatou o que via. "Bandidos expulsando moradores, matando gente, pilhando casas; escolas e indústrias fechadas; nada de transporte a não ser moto, nada de combustíveis; bancos que abrem algumas horas em alguns dias da semana, fome, fome, fome. Perspectivas? Só Deus sabe."

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