Parentes na guerra e adaptação desafiam nova vida no Brasil de repatriados de Gaza

Palestino-brasileiros abrigados no interior de SP relatam preocupação com familiares deixados para trás e com poucas oportunidades de trabalho

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São Paulo

O palestino com cidadania brasileira Ramadan Hasan Abdou, 29, teve de tomar a decisão mais difícil de sua vida dias após o início da guerra Israel-Hamas. Depois de escapar da morte em um bombardeio que destruiu a sua casa, embarcou para o Brasil no primeiro grupo de repatriados pelo governo federal, mas deixou para trás três de seus filhos. As crianças não tiveram autorização da mãe para viajar e ainda hoje estão sob risco na Faixa de Gaza.

Com seis meses de guerra, completados no domingo (7), Abdou tenta se adaptar à nova rotina, mas afirma que a cada dia a angústia aumenta. A mãe das crianças, sua ex-mulher, está desaparecida desde que outro ataque devastou o prédio em que ela estava abrigada. Os filhos agora vivem com duas tias em condições precárias numa tenda na cidade de Rafah, o único grande centro urbano que Tel Aviv ainda não invadiu por terra.

Mohammad Farahat (centro), 43, em chalé onde mora desde outubro de 2023 com a família, em Morungaba (SP); na foto, da esq. para a dir., os filhos Toroq, 19, Somaya, 12 e Adam, 11 - Eduardo Knapp/Folhapress

"As crianças [em Gaza] estão morrendo de fome. Eu costumo dizer que os animais agora vivem melhor do que as pessoas", diz Abdou, que mora em um apartamento alugado em São Paulo com a atual mulher e outros dois filhos. "Há muita dor no meu coração. Não tenho paz. Meus filhos lutam contra a morte minuto a minuto."

Outros repatriados de Gaza, que tentam reconstruir a vida no Brasil, relatam sofrimento semelhante. Eles alternam trabalho, aulas de português e sessões de atendimento psicológico com o noticiário do conflito.

Segundo o Itamaraty, 115 brasileiros e familiares foram retirados de Gaza desde outubro passado. Os últimos quatro deixaram o território palestino em 8 de fevereiro e chegaram a São Paulo em um voo comercial.

Atualmente, 32 palestino-brasileiros e familiares repatriados estão na Vila Minha Pátria, em Morungaba, a cerca de 100 km de São Paulo. O espaço é administrado pela Convenção Batista Brasileira, uma associação cristã de igrejas batistas, para abrigar refugiados e imigrantes. Hoje, o local acolhe 147 pessoas, a maioria afegãos.

Jennifer Soares, coordenadora do Vila Minha Pátria, diz que o governo federal os procurou após o início da guerra para solicitar o acolhimento dos oriundos de Gaza. A maior parte dos repatriados chegou em novembro, e o projeto prevê que eles permaneçam no local por pelo menos seis meses.

Uma equipe de voluntários trabalha para que o grupo conquiste autonomia e se integre socialmente. De segunda a sexta-feira, adultos e crianças têm pelo menos duas horas de aulas de português. Os menores, que frequentam a escola municipal, fazem lições de reforço para conseguir acompanhar os colegas de classe.

De tempos em tempos, o grupo participa de oficinas de artes e atividades esportivas. Com 170 mil metros quadrados, o Vila Minha Pátria tem piscina e quadras de futebol, vôlei, basquete e tênis. Rodas de conversa e palestras são organizadas para que os repatriados possam compartilhar dores e lidar com o estresse pós-traumático.

O palestino Mohammad Farahat, 43, disse ter sido bem recebido, mas afirma que o processo de adaptação não tem sido fácil. "Quando chegamos, foi muito, muito ruim. É uma experiência nova no Brasil. E o pano de fundo é o sangue, a guerra, porque deixamos nossos entes queridos em Gaza. Eles ainda estão sofrendo. Estávamos na escuridão porque deixamos tudo para trás: familiares, nossa casa, nossas fotos", diz ele, cuja esposa e filhos têm nacionalidade brasileira. "Mas, gradualmente, estamos lidando com isso."

Preocupado com a situação de amigos e parentes em Gaza, Farahat também manifesta receio com a situação da própria família no Brasil. Ele se diz assustado com o alto custo de vida e com poucas oportunidades de emprego em Morungaba, que em 2022 tinha menos de 13,7 mil habitantes, segundo o IBGE. "Não podemos comprar os remédios que não são oferecidos pela rede de saúde, nem roupas. O aluguel de casas não é acessível. Vai ser desafiador encontrar um emprego adequado para garantir um futuro sustentável à minha família."

Farahat pede ajuda para que seu filho continue o curso de multimídia, interrompido pela guerra em Gaza. A coordenadora Jennifer Soares afirma que a qualificação profissional costuma ser motivo de frustração para imigrantes e refugiados. Em dois anos de projeto, nenhum diploma dos atendidos pelo serviço foi revalidado em território brasileiro.

A palestina-brasileira Noura El Jamal, 48, em frente aos chalés do abrigo Vila Minha Pátria, em Morungaba (SP); ela vive no local com mais duas filhas desde outubro, quando deixou Gaza - Eduardo Knapp/Folhapress

Os repatriados de Gaza estão incluídos no Bolsa Família. Eles também têm acesso a atendimento psicológico da rede municipal, mas apontam problemas: nem sempre existe um tradutor de árabe e, quando há, pacientes se sentem inibidos com a presença de mais um profissional além do psicólogo.

Cidadãos que já tinham uma vida estabelecida no Brasil antes da guerra também lidam com mudanças. Monir Bader, 39, viajou a Gaza para visitar familiares e acabou encurralado na guerra. De volta, decidiu abandonar a profissão de motorista de aplicativo e passou a vender comida árabe feita em sua casa para passar mais tempo com a família.

Ainda hoje, conta Bader, os filhos de 12, 10 e 5 anos se assustam quando ouvem fogos de artifício. "E os meus sogros estão sofrendo porque estão aqui, mas os filhos deles estão lá. Minha sogra chora o dia inteiro."

Palestino-brasileiros fazem campanha para governo brasileiro resgatar parentes

Diante da iminência de Israel iniciar uma ofensiva terrestre de larga escala em Rafah, no sul de Gaza, alguns palestino-brasileiros começaram uma campanha para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resgatar os familiares que continuam no território palestino.

O movimento é encabeçado por Hasan Rabee, que ficou conhecido ao filmar os ataques israelenses em Gaza e compartilhar nas redes sociais sua rotina pela sobrevivência. Ele e outros repatriados mantêm contatos diários para trocar informações sobre o conflito e sobre a situação dos parentes que estão na zona de guerra.

Rabee viajou a Brasília no mês passado para apresentar a autoridades uma lista de 104 familiares que permanecem em Gaza. "O documento era bem maior e tinha mais ou menos 150 nomes. Mas, a cada semana, a lista vai diminuindo porque as pessoas estão morrendo. Quantos vão restar?", questiona ele, que viajou acompanhado de duas advogadas e da presidente de uma ONG.

Apesar da crise humanitária em Gaza, o governo Lula decidiu que não dará autorização de residência ou visto temporário para fins de acolhida humanitária a palestinos de Gaza com o argumento de evitar uma nova "nakba". A palavra, que significa catástrofe ou desastre em árabe, faz referência à diáspora forçada de palestinos no fim da década de 1940.

"Eu não vou sossegar", diz Rabee. "A gente está bem, mas a nossa cabeça, a nossa mente e o nosso coração estão com a nossa família em Gaza."

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