Eleitorado latino ultrapassa o negro nos EUA, e Trump tenta ganhar votos em suas divisões

Visão do grupo como território democrata enfraquece conforme partidos se dão conta de sua heterogeneidade

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Washington

O eleitorado latino nos Estados Unidos ultrapassou o negro nesta eleição, superando o empate, na prática, observado no último pleito presidencial. Longe de ser um bloco uniforme, há inúmeras divisões internas, que fazem do grupo um terreno em disputa para Joe Biden e Donald Trump.

Neste ano, mais 4 milhões de latinos poderão votar pela primeira vez –em sua maioria, jovens que completam 18 anos–, o que leva o eleitorado a uma fatia de 14,7% do total, atrás apenas dos brancos. Historicamente, a taxa de comparecimento às urnas é a mais baixa entre todos os grupos étnico-raciais. Trata-se, portanto, de um eleitorado com um enorme potencial ainda não realizado.

Na busca de mobilizar este segmento, Biden aproveitou o início da Copa América nos EUA, na última quinta (20), para lançar uma campanha usando o futebol como isca –algo inusual em uma corrida americana– para registrar e engajar eleitores latinos.

Uma propaganda eleitoral específica, intitulada "Goool!", foi produzida para ser veiculada durante o torneio. A peça destaca duas das principais prioridades para este eleitorado: economia e violência por armas de fogo.

Trump, por sua vez, mudou no início do mês de "Latinos com Trump" para "Latino-americanos com Trump" o nome do braço de sua campanha voltado ao grupo. Assim como democratas, o esforço mira promessas econômicas, mas soma a elas outra: controlar a imigração.

Mais de mil migrantes fazem fila para passar por um centro de processamento da patrulha de fronteira dos EUA em Eagle Pass, Texas - John Moore - 18.dez.23/Getty Images via AFP

Pode parecer contraintuitivo, a princípio, que a maior parte do eleitorado hispânico prefira o republicano —que acusa imigrantes de "envenenar o sangue da nação" e promete deportações em massa— quando o assunto é a fronteira. No entanto, é isso o que pesquisas têm mostrado consistentemente.

"Eles pensam ‘estamos aqui, somos americanos agora, não somos como aqueles que acabaram de cruzar a fronteira’. Muitas pessoas estão caindo nessa mentira de que existem os latinos bons e os ruins", afirma Domingo Garcia, presidente da Liga dos Cidadãos Latino-Americanos Unidos (Lulac, na sigla em inglês), a maior e mais antiga organização hispânica dos EUA.

A ênfase da campanha de Trump dada a latino-americanos, em oposição a apenas latinos, é uma forma de explorar essa divisão, afirma Marie Arana, autora de "LatinoLand", obra lançada em fevereiro que retrata a comunidade nos EUA, valendo-se de sua própria experiência —sua família é de origem peruana.

"Os latinos estão muito preocupados com a fronteira. Não gostam do fato de que isso está arruinando suas reputações. A grande maioria é nascida nos EUA, estão aqui há gerações", afirma Arana. De fato, 76% do eleitorado latino é composto por pessoas que nasceram em território americano. O restante são cidadãos naturalizados.

A retórica agressiva de Trump contra imigrantes não aliena esse eleitorado porque, em síntese, é uma população que tem casca grossa, aponta a autora, especialmente no sudoeste americano, onde mexicano-americanos predominam. "Para eles, o que importa é a economia, são os empregos."

Esse é um tema em que Biden e Trump praticamente empatam na preferência do eleitorado latino, segundo pesquisa realizada nos estados de Arizona, Carolina do Norte, Nevada, Texas e Pensilvânia. Embora a taxa de desemprego esteja em nível historicamente baixo durante o governo Biden, a inflação acumula alta de quase 20%.

"Acho que é nesse front que os republicanos têm feito alguns avanços na comunidade latina", avalia Garcia, que já foi deputado pelo Partido Democrata no Texas. Trump é melhor avaliado em economia não só por latinos, mas por americanos em geral.

Para o presidente da Lulac, homens são especialmente suscetíveis ao discurso de Trump, tanto por em geral serem os principais provedores de suas famílias, quanto por se identificarem com a imagem de homem forte projetada pelo candidato. "Como Bolsonaro fez no Brasil", diz Garcia.

Outra clivagem importante para entender o comportamento desse eleitorado é sua origem nacional. O principal grupo hispânico nos EUA são os mexicanos (quase 60% do total), seguidos por porto-riquenhos (9%), e salvadorenhos, dominicanos e cubanos, todos com cerca de 4%.

Arana faz uma espécie de tipologia: cubanos tendem a ser mais conservadores, uma vez que resultam de uma migração motivada pela fuga do regime de Fidel Castro. Estão bem estabelecidos na Flórida, e são em sua maioria brancos. Venezuelanos e nicaraguenses têm posição semelhante pelos mesmos motivos, acrescenta Garcia.

Na outra ponta estão os caribenhos, concentrados no nordeste dos EUA, como a região de Nova York. "Os EUA ocuparam essas ilhas. Os porto-riquenhos, por exemplo, têm uma espécie de meia cidadania. E há ainda diferenças raciais, já que muitos desses países têm um histórico de escravidão", afirma Arana.

Entre um grupo e outro, há a enorme população de origem mexicana, concentrada no sudoeste do país, e atravessada por suas próprias divisões. Há aqueles que vêm de famílias que já habitavam as terras mexicanas tomadas pelos EUA no século 19, os descendentes dos imigrantes que fugiram da revolução mexicana, e as ondas mais recentes, motivadas principalmente por fatores econômicos e pela violência.

Garcia dá como praticamente certa a vitória de Trump entre o eleitorado latino na Flórida e no nordeste americano. Já no sudoeste, em estados como Nevada, Califórnia, Texas e Novo México, ele acredita que a maior parte do segmento vai apoiar Biden.

Apoiador do democrata, há um fator que preocupa o presidente da Lulac: a escolha do vice na chapa de Trump. Um dos cotados para o cargo é o senador Marco Rubio, da Flórida, filho de imigrantes cubanos.

"Isso pode mudar as coisas, se Trump for o primeiro dos principais candidatos à Presidência com um vice latino. Isso pode nos dividir. Tudo o que Trump precisa é de 200 ou 300 mil voto em estados como Arizona, Nevada, Wisconsin e Pensilvânia para vencer", afirma.

Além da campanha republicana, grupo conservadores hispânicos têm trabalhado para ganhar esses votos. Um exemplo é o Libre. Na última semana, a organização lançou o vídeo "Vive tú American Dream" (viva seu sonho americano). "Muitos de nós acham que a política é para pessoas especiais. Elas são aquelas que fazem as leis e promovem as mudanças, porque nos países de onde viemos, na maior parte do tempo, é isso o que acontece. Mas na América é diferente", diz o narrador.

Da sua parte, a Lulac está organizando diversas ações para registrar o maior número de pessoas possível para votar. Esse é um dos focos da convenção nacional da organização, que acontece nesta semana em Las Vegas, Nevada –um estado-chave no pleito deste ano–, com o tema "empoderando a próxima geração".


Folha estreia série sobre eleição americana

Quatro anos depois, Joe Biden e Donald Trump voltam a se enfrentar nas urnas em novembro, numa disputa que deve ser novamente acirrada. Os grandes temas que mobilizam o eleitorado dos Estados Unidos serão abordados pela correspondente Fernanda Perrin pelos próximos meses, até outubro. Imigração, economia e aborto estarão entre os assuntos presentes nas reportagens da série Biden x Trump.

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